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O meu sótão é cor de rosa

Às vezes, de noite, subo ao telhado do sótão, sento-me a ver as luzes da cidade e o frenesim do fim dos dias e penso que gostava de ficar ali para sempre. O meu sótão é cor de rosa. Leonor Teixeira, a Ametista

O meu sótão é cor de rosa

Às vezes, de noite, subo ao telhado do sótão, sento-me a ver as luzes da cidade e o frenesim do fim dos dias e penso que gostava de ficar ali para sempre. O meu sótão é cor de rosa. Leonor Teixeira, a Ametista

África dos meus sonhos - A minha versão

 'Voa por mim, pássaro do sol.

Voa alto.'

África dos meus sonhos, de Kuki Gallmann

 

Kuki viu Paolo surgir por entre as colinas verdejantes e floridas, descalço como sempre gostara, andando em passos largos pelo chão quente do Quénia. Trazia consigo aquele sorriso rasgado no rosto, prova da felicidade que transportava tão docemente na alma, e o espírito de aventureiro que lhe era profundamente característico. Por cada árvore que passava colhia uma flor, um fruto, um ramo, uma folha, um cheiro de tudo. A sorrir, sempre a sorrir, chegava à fazenda e envolvia Kuki num abraço, rodopiava com ela no seu colo e cantarolava músicas africanas. Todo o seu contentamento era sinal de que cumprira mais uma missão em prol da vida selvagem para além do seu amor a Kuki, eterna companheira de aventuras, que deixara para trás a sua vida em Itália para ficar com ele, sempre fiel e leal, num rancho junto às florestas do Quénia.

Paolo não tinha morrido. Mas, a cada amanhecer, Kuki acordava assustada, de pele molhada e olhar aflito, o corpo trémulo por um sonho perturbador. Via o homem da sua vida adormecido como num sono sem fim, num lugar onde tudo era branco mas sombrio, e não acordava. Mas Paolo estava ali, deitado a seu lado, e o seu respirar era tranquilo, imensamente tranquilo. Kuki chegou a pensar que aquele sonho era significado de um presságio, um mau presságio, mas como poderia ser se, dizem, sonhar com a morte significa vida?

E Paolo vivia, vivia intensamente. Entregava-se de corpo e alma às mais nobres causas, todas as que envolvessem a protecção dos animais do Quénia, filhos de África. Acompanhava-o sempre nessa jornada Emanuele, seu enteado, cujo relacionamento era baseado numa entrega incondicional e desmedida, como pai e filho inseparáveis.

Todos os dias, ao entardecer, passeavam pelas planícies junto às nascentes e Emanuele, ainda criança, saltitava de braços abertos por entre lírios vermelhos selvagens, as suas mãos tentavam tocar as aves que pairavam nos ninhos a chilrear, os seus dedos dançavam como bailarinos ao sabor de um vento cálido. Paolo ficava sentado entre as acácias a observá-lo com um sorriso terno, na mais serena nostalgia. Emanuele parecia voar até aos céus, como o mais fascinante dos pássaros de África, e era tão alto o seu voo.

Emanuele era encantador, mas misterioso. Vivia de um segredo, o maior e mais perigoso de todos e que poderia ser-lhe fatal. A sua sedução por serpentes era incontrolável e, durante as manhãs e inícios de tarde, corria para o seu refúgio onde guardava as cobras que conseguira apanhar até então e cuidava carinhosamente de todas sem excepção, inclusivamente das mais mortíferas. Esta era a maior preocupação de Kuki que, desde que descobrira o esconderijo, temia pela vida do seu filho adolescente. Nos seus sonhos, eternos pesadelos, Emanuele perdia a vida violenta e tragicamente por uma mordedura de uma víbora.

Eram sonhos constantes, sonhos maus, pesadelos que a perseguiam a cada noite solitária, sempre que Paolo e Emanuele se ausentavam para pernoitar em defesa da natureza do Quénia.

- Afinal, estão ambos vivos - sussurrava à bebé Sveva, fruto da sua ligação com Paolo, sempre que a embalava no colo. - Os homens da minha vida só morrem nos meus sonhos porque, a cada despertar, eles estão aqui. Paolo descalço, como sempre, a cantarolar pela terra quente e húmida com um sorriso do tamanho do mundo e Emanuele a voar, na sua inocência e bondade, como um pássaro do sol.

Kuki, na sua tristeza e coragem, acreditou nessa utopia e fez dela a sua vida. Paolo e Emanuelle estavam ali, estariam sempre, para viverem com ela a fantasia da descoberta de toda a beleza de África e do tanto que as suas terras ainda tinham para lhes oferecer e ensinar.

Desde então, em cada fim de tarde, Kuki via um pássaro do Quénia, o mais belo que alguma vez vira, via-o voar devagar debaixo do sol que se punha resplandecente para lá dos rios. Bem perto, uma fogueira ardia nas colinas junto às acácias e os dois desapareciam no horizonte numa suavidade suprema. Paolo era o sol, Emanuele o pássaro.


 

(Texto escrito para a Fábrica de Histórias)

por Leonor Teixeira, a Ametista

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