Perdi as asas que o tempo me cedeu
Vejo-me mendigar por becos paralelos às ruas da vida, imagino-me sob o céu de Toscana a contar as estrelas em dialecto italiano, mas os meus olhos não conseguem alcançá-las. Sinto-me nua neste silêncio absoluto, a inspiração desvaneceu há muito, as letras não deslizam na ponta dos meus dedos e não consigo completar os rascunhos inacabados.
Perdi as palavras no vazio dos caminhos e as folhas do meu diário de viagens ficaram em branco. Há uma distância incalculável entre os meus passos e todos os lugares, nada tem movimento, tudo é intocável. O tudo e o nada confundem-se, equivocam-se os sentidos, deixou de haver um enlace entre as verdadeiras coisas. Tudo me parece finito mesmo que inabalável. Parou o mundo ou acabou a vida?
Podiam morrer todos os relógios e quebrarem todos os espelhos, podiam fundir-se as idades e aninharem-se os corpos salpicados de Tejo e de Almonda. Podiam derreter os corações calados pelos pátios de Alfama e as almas viajarem nos eléctricos de Lisboa, por entre beijos molhados de sonhos cristalinos e abraços suados de pontes por construir.
E queria. Queria levar de mim o meu chão de Ribatejo e voar até onde não existissem muralhas. Mas fiquei no mesmo lugar e não voei.
Perdi as asas que o tempo me cedeu.
(Texto escrito em 29 de Março de 2016)