Às vezes, de noite, subo ao telhado do sótão, sento-me a ver as luzes da cidade e o frenesim do fim dos dias e penso que gostava de ficar ali para sempre. O meu sótão é cor de rosa. Leonor Teixeira, a Ametista
Às vezes, de noite, subo ao telhado do sótão, sento-me a ver as luzes da cidade e o frenesim do fim dos dias e penso que gostava de ficar ali para sempre. O meu sótão é cor de rosa. Leonor Teixeira, a Ametista
O envelope lacrado permanecia perdido no chão. A seu lado, um corvo acabava de fechar as asas e olhou para mim sem se mover. Os meus olhos castanhos pararam no tempo e as minhas mãos pálidas tremeram ao querer alcançar o envelope, mas o meu corpo esguio permaneceu inerte por entre as batidas fortes de um coração assustado.
Escutei um ligeiro ruído, ergui o olhar e deparei-me com alguém surgido do nada.
Era excessivamente moreno, alto e bem constituído, cabelos longos e lisos da cor dos seus olhos, negros como as asas do corvo que acabara de ver ali, naquele lugar. Era bonito, demasiado até, com uns traços de índio que lhe aumentavam a beleza.
O corvo desapareceu no instante em que o desconhecido declarou, em silêncio, a sua presença. Pegou na carta com as suas mãos ligeiramente enrugadas, de onde sobressaía uma penugem invulgar. Estendeu-me o envelope lacrado e acenou a cabeça como quem diz: Abre.
O meu rosto descorado deixou transparecer incredulidade por um lado, mas por outro uma confiança rara. Por momentos, senti um ar fresco e brando vindo de qualquer lugar estranho e que me transmitiu sedução por tão grande mistério. Os meus cabelos castanhos ondularam por entre a brisa que ia chegando e acalentando o meu coração, de tão apressado que batia. Os meus lábios ligeiramente finos rasgaram-se num sorriso incerto e agarrei na carta a receio.
Puxei o lacre suavemente e, com um misto de medo e curiosidade, retirei a folha de papel escondida no envelope cor de ébano.
Pestanejei antes de começar a ler as palavras contidas na carta mas, antes, perguntei ao desconhecido o seu nome. Corbie, disse-me com uma voz grave e doce ao mesmo tempo que esboçava um sorriso que deixava mostrar os seus dentes brancos e perfeitamente alinhados.
Comecei a ler a carta enquanto sentia, bem perto de mim, o seu ar sereno e um olhar profundo.
'Vem comigo e entra no mundo que inventei só para ti.
Não sabes quem sou, mas eu conheço-te como ninguém. Conheço os teus sonhos, as tuas vivências, as tuas angústias e as tuas esperanças. Sei que guardas segredos, recordações jamais esquecidas e trazes contigo uma força interior que te deixa sorrir e acreditar em dias melhores. Sei de cor a tua alma cigana e o teu espírito tão próprio de uma criança que se recusa a crescer. Sei que queres ser livre e sobrevoar até sempre o mar que te apazigua o coração. Vem comigo. Quero levar-te a conhecer um mundo imaginário totalmente à parte deste em que vives e, no fundo, tão perto daqui. Lá, conseguirás ser feliz.
Despe-te de preconceitos, mascara-te, veste-te das personagens que um dia sonhaste ser. Encarna os papéis principais ou secundários. Escolhe. Dou-te esse direito. Se pretenderes, sê apenas figurante e admira os cenários, envolve-te neles. Lá, no lugar de que te falo, as pessoas são imortais e transformam-se em pássaros.'
Para a Laura, de um corvo perdido que não traz maus presságios.'
Olhei para o homem que se deparava à minha frente e deixei-me ficar no silêncio que transbordava em nosso redor. Eu, Laura, secretária de uma média empresa e pintora nas horas vagas, era uma mulher sonhadora em demasia. Estaria eu perante um construtor de sonhos?
Ele estava ali, descalço, um corpo semi-nú coberto por uma capa negra e longa com um capuz que lhe caía pelas costas. Sobre o ombro, um corvo que aparecia e desaparecia por entre voos curtos e lentos. Voava com as suas asas de veludo e pousava, de seguida, suavemente. Enquanto o corvo esvoaçava sorrateiramente, o homem misterioso desaparecia por breves instantes e regressava com um olhar enigmático.
Olhei para mim mesma de preto trajada, um vestido que me torneava o corpo até aos pés. Descalça também e com os cabelos compridos em desalinho, estendi-lhe a mão e parti com ele.
Um homem-corvo, um feiticeiro, um anjo quem sabe, que trouxe consigo bons presságios e me fez partir em busca de uma liberdade incógnita que precisava, urgentemente, de alcançar.
Levantei-me, depois de um sono ansioso, sem saber muito bem a que planeta pertenço. Terra ou Marte?
Deambulei pela casa e senti o meu corpo tremer. É hoje. Olhei-me ao espelho e perguntei-me: É mesmo hoje? Meu Deus!
Olhei através da janela do quarto. O sol brilhava como num dia de Verão. O dia estava pura e simplesmente lindo.
Coragem, Leonor, coragem. Tu vais conseguir. Ouvia a voz de um anjo bem juntinho ao meu ombro que sussurrava: Calma...
O meu coração batia aceleradamente enquanto me preparava para agarrar o dia. Carpe Diem. Afinal, hoje é um dia especial e único na tua vida, miúda - disse-me o anjo.
Lembro-me que falei comigo mesma o tempo todo. Parecia um autêntico diálogo mas, afinal, quem estava ali era apenas e somente eu. Que belo monólogo, sem pés nem cabeça e sem espectadores.
Percorri a casa de trás para a frente e de frente para trás e no fim de me encontrar completamente preparada para sair, parei em frente à porta de entrada e enchi o peito de ar para depois o expirar, muito devagarinho. Ainda falta, pensei.
Mal tinha calçado os sapatos que tinha comprado de véspera e já começava a sentir uma ligeira dor nos pés. Tacão alto? Alto não, altíssimo! Nunca mais na vida. Não tarda, já não consigo andar. Agora tens de aguentar, Leonor.
Não me lembro de conduzir até casa da minha mãe. Foi como se o carro me levasse como que numa onda que rebenta velozmente.
3 de Outubro de 2009, 15 horas.
Tocou o telefone e atendi num ápice. Acho que gritei, não me lembro bem, e do outro lado soaram risos. A Helena da Autores Editora acabava de chegar à minha santa terrinha. Não se encontrava muito longe e, de tão querida que é, num instante encontrou o caminho para a casa da minha mãe. Demos um abraço há tanto esperado.
Apresentei-lhe a família, conversámos um pouco e tentou acalmar-me tal era o meu nervosismo.
Estávamos nós numa conversa animada e uma vez mais a Helena no seu melhor a ajudar-me a descontrair, o telefone voltou a tocar. Quem poderia ser? Não mais do que a Diana, minha querida amiga Maria das Quimeras e a Marta, a muito admirada Sonhandoaosquarenta, ambas perdidas no meio da cidade, quem sabe mais localizadas do que eu própria, muito mais perdida do que elas. Acho que a minha voz tremia enquanto tentava ensinar-lhes o caminho para a casa da minha mãe, mas atrapalhei-me toda e a minha irmã conseguiu salvar a situação (pensávamos nós). Esperámos por elas, mas escapou-se-lhes um pormenor importante e, depois de algum tempo de espera, já a Diana e a Marta se encontravam na direcção oposta e a caminho do local da festa.
Fomos ao seu encontro mas, às tantas, estávamos tão perto e não nos conseguíamos ver. Finalmente, lá nos avistámos e seguimos viagem em fila indiana até ao destino.
Parados os carros numa ladeira íngreme, fui ao encontro das minhas queridas amigas por entre braços abertos e um andar desengonçado.
Foi um momento bonito. Abraços, beijos e sorrisos.
3 de Outubro de 2009, 17 horas.
Encontrava-me ainda por detrás do balcão do bar a tirar uns cafezinhos para as convidadas especiais (a máquina fez um barulho esquisito e ainda pensei que íamos ficar sem café), quando começaram a aparecer alguns amigos e conhecidos, família e colegas de trabalho. Fui apanhada completamente desprevenida. Pensei que as pessoas começassem a chegar um pouco mais tarde, mas foi puro engano meu. A surpresa foi grande e, ainda as manas andavam atarefadas a dar os últimos retoques no bar, já as pessoas começavam a instalar-se na esplanada. Acho que 'rosnei' a quem me ofereceu ajuda e quase me senti 'à beira de um ataque de nervos' antes de um discurso feito à base de agradecimentos e sem formalidades.
Queria estar em todo o lado. Com as amigas do blog, com a Gerente da Fábrica e com todos os que carinhosamente iam chegando. Mas impossível desdobrar-me e o tempo voou. Um bocadinho aqui, outro pedacinho ali e as palavras não me saíam, a não ser muito obrigada.
3 de Outubro de 2009, 20 horas.
Depois das pessoas começarem a dispersar permaneceu um grupo e, ao cair da noite, decidimos ir jantar a um restaurante que se encontrava ali perto. Deslocámo-nos até lá numa bela caminhada na mais perfeita harmonia.
Enquanto sentíamos o ar ameno de uma autêntica noite de Verão conversávamos, por entre sorrisos e gargalhadas, à porta do restaurante. Esperámos hora e meia, se não mais, para conseguirmos uma mesa vaga para doze pessoas. Juntaram-se as operárias da Fábrica e a sua Gerente. Falámos de nós e das inspirações, dos temas semanais, da produtividade e do atraso na entrega dos textos.
Foi um jantar divertido onde imperou a alegria e boa disposição, disparates saudáveis e bom humor, típico dos ribatejanos. Eu, refeita do estado de nervos, comecei a sentir-me meio 'abananada' e com pouca reacção.
Regressámos ao bar, aproveitámos o ar da noite e sentámo-nos em roda de uma mesa de amizade. Trocaram-se mails e endereços dos blogs, tiraram-se fotografias para recordar. Qual não foi o meu espanto quando se fez silêncio e começaram a cantar-me os parabéns. Esquecera-me por completo do dia que acabava de entrar e fiquei comovida com mais um gesto de carinho.
4 de Outubro de 2009, 1 da manhã.
Hora da despedida.
Saída do Ribatejo por parte de quem pertence à Estremadura. Demos abraços e beijos de despedida e o obrigada por tudo sempre presente. Ao vê-las partir, a saudade instalou-se de imediato.
Para quando um novo encontro? Talvez para breve...
P.S. E é que não foi mesmo? E como resultado do encontro, eu e a Marta começámos a fazer parte do blog No Estendal da Maria a convite da própria. Vão lá espreitar, vão!
Rompe o dia e desperto de um sono tranquilo. Levanto-me, dirijo-me à janela do quarto e afasto o cortinado que encobre, muito ao de leve, a luz vinda do exterior. O sol parece espreitar, meio escondido, através de nuvens brancas.
Observo as árvores que resistem ao tempo num terreno bravio bem perto de mim. Contemplo a serra que se avista ao longe e respiro o ar fresco da manhã. Há um misto de cores que entram pelo meu quarto, bem cedinho, ao acordar. O verde dos montes que se funde com o castanho da terra e o céu que vai limpando, deixando transparecer o azul que lhe é fiel.
Caminho até à sala, abro a janela de par em par e respiro o cheirinho a pão quente que vem da pastelaria do outro lado da rua. Tem bolos fresquinhos de fabrico caseiro. Por cima da lojinha do pão, janelas semiabertas deixam a descoberto cortinados coloridos que ondulam com a brisa matinal.
Um autocarro pára junto da escola acima da minha rua. Vejo carros que passam e estacionam junto ao passeio, outros que seguem viagem. Consigo escutar gargalhadas infantis no átrio e a campainha de entrada para as aulas acaba por tocar.
Há vozes que se cruzam na rua por entre passos, uns apressados outros vagarosos. Os cães ladram ao longe, ouvem-se disparos de espingarda em época de caça.
Ergo o olhar e avisto o castelo da cidade que conhece tão bem as minhas raízes. Estão guardadas num canteiro de flores.
De um dos lados da casa, inalo o aroma que a natureza me oferece. Do outro, sinto o cheiro a movimento numa rua que se cala a cada fim de semana.
Fecho a janela, abstraio-me do ruído da vida lá fora e deixo-me ficar no silêncio do lar.
A campainha quebra o meu momento repousante, abro a porta mas não vejo ninguém. Há um envelope lacrado perdido no chão.
Aqui, de onde vos escrevo, sente-se um aroma tradicional do incenso que vou espalhando pela casa.
Tu entras devagar, à tardinha, beijas-me a testa em sinal de apreço e deixas-me divagar.
Os meus dedos dançam por entre as teclas do computador da secretária colocada num recanto da sala ampla onde tu, sentado no sofá chaise-longue de tecido castanho escuro e preto, assistes a um filme romântico.
Inspiro-me ao som da banda sonora, uma música sublime de Jack Nitzsche. Observas as paredes cruas decoradas com telas criadas por mim, umas abstractas outras paisagísticas, que contrastam na perfeição com a arte africana que as completa.
Do outro lado da sala, cortinados laranja percorrem a ampla janela de onde avisto o castelo da minha cidade. No final do filme levantas-te, afastas a cortina e contemplas a paisagem num silêncio absoluto.
Voltas a sentar-te, desta vez no sofá amarelo que está junto à janela, coberto de almofadas pretas e laranja, e poisas os pés na alcatifa que cobre parte do chão em tijoleira. Tem um misto de cores que embeleza o espaço. Castanhos, bordeaux, laranjas.
A meio da sala, pendurado no tecto, um espanta espíritos. Metade sol metade lua, deixa soltar aquele som peculiar de quando se entra numa típica loja chinesa de antiguidades. Levantas-te, consegues tocá-lo com os teus cabelos e o tom das canas de bambu acaba por soar.
Olhas o cavalete a um canto da sala com uma tela de nós meio pintada. Aspiras o cheiro suave a guache e pegas num pincel. Sentes a tinta ressequida e perguntas-me porque não voltei a pintar. Encolho os ombros, permaneço nas minhas divagações e tu aproximas-te de mim. Enrolas os teus braços no meu pescoço, beijas-me o cabelo e deixas-me ficar, absorta, na minha escrita.
Há velas, muitas velas. Acendes uma com aroma a baunilha e eu inalo o cheirinho doce que me acalenta a alma e me faz sussurrar as palavras que escrevo.
Escolho a música que me faz voar e aumento o volume da aparelhagem escondida na parte inferior da secretária onde me sento. O Purple Rain de Prince quebra o silêncio que existe entre nós e eu escrevo, sem parar. Surgem imagens vindas do meu imaginário, nascem histórias que lanço para vós.
Passeias pela sala e eu continuo aqui, no mesmo lugar. Paras junto ao móvel de cerejeira maciça, frente ao sofá chaise-longue, onde estão arrumados os livros que trouxe de casa da minha mãe. Alguns de poetas e romancistas que admiro, outros que me transmitem algo. Pegas num daqueles onde mora o meu nome, romances escritos por mim com onze anos apenas.
Folheias o álbum de fotografias, arrumado numa das prateleiras, que guarda as minhas melhores recordações e abres um baú de madeira onde arrecado momentos. Ao lado, um poema emoldurado da minha avó dedicado a mim.
Há um candeeiro de pé alto num dos cantos da sala, que ilumina baixinho os retratos expostos numa pequena camilha. Uns meus, outros de quem me é querido, onde estão marcados os nossos sorrisos. Agarras em cada um deles e sorris também.
Passam as horas, pegas no puff preto colocado sobre a alcatifa multicolor e sentas-te a meu lado. Encontras uma folha de papel amarelecida pelo tempo, perdida no porta revistas de ferro forjado pousado no chão entre o cavalete e o sofá amarelo, e lês aquela carta antiga que escrevi para ti.
Agarras-me a mão com uma força excessivamente grande, admiras a sala de uma ponta à outra, murmuras a palavra oriental e desapareces no silêncio da noite deixando no ar um rasto de ti.
Aqui, de onde vos escrevo, a saudade tem cor e presença. Aqui, neste meu cantinho, escrevo por entre luz, aromas, sons, pinceladas, memórias e fantasias.