Às vezes, de noite, subo ao telhado do sótão, sento-me a ver as luzes da cidade e o frenesim do fim dos dias e penso que gostava de ficar ali para sempre. O meu sótão é cor de rosa. Leonor Teixeira, a Ametista
Às vezes, de noite, subo ao telhado do sótão, sento-me a ver as luzes da cidade e o frenesim do fim dos dias e penso que gostava de ficar ali para sempre. O meu sótão é cor de rosa. Leonor Teixeira, a Ametista
Ele e ela dirigiam-se a casa depois de uma agradável ida ao cinema. O filme a que tinham assistido tinha-lhes transmitido um estado de alma intenso. Caminhavam em silêncio e, ao aproximarem-se do semáforo que cruzava a rua principal da cidade com uma outra qualquer, ele deu-lhe a mão e puxou-a para junto de si. Ficaram tão perto um do outro que os seus lábios quase se tocaram. Naquele instante, o sinal estava vermelho e ele convidou-a para dançar.
Sem música?, perguntou ela em tom de timidez. Eu canto para ti, respondeu ele e, num gesto lento, enrolou-a de encontro ao peito conduzindo-a até à estrada. A rua estava deserta, o silêncio era de ouro. Observaram o semáforo passar a verde enquanto davam início a uma dança na estrada. Ele cantarolava qualquer música lenta enquanto os seus corpos se enlaçavam na mais perfeita harmonia. O sinal mudou de cor, passou de verde a laranja, a dança parou, olharam-se de perto e deitaram-se na estrada, lado a lado. As suas mãos cruzaram-se enquanto o vermelho do semáforo despontava, olharam as estrelas, identificaram cada uma delas sobre um chão frio que refrescava os seus corpos quentes, ávidos de aventura. Perderam a noção do perigo, permaneceram deitados sob um céu que deixava mostrar uma lua prateada, autêntica confidente de um momento que não queriam que acabasse.
O sinal passou a verde, sentiram um carro aproximar-se a alta velocidade e levantaram-se rapidamente. Saltitaram até ao passeio, as mãos continuavam dadas enquanto automóveis vindos de longe passavam apressados. Abraçaram o semáforo que ia mudando de cor, soltaram gargalhadas e voltaram a tocar-se numa dança lenta em redor do sinal de trânsito. Os risos deram lugar a sorrisos ternurentos.
Sentiam-se livres para desafiar o destino. O amor entre eles nascia agora, por entre um perigo e uma aventura que se encontravam entre o proibido e o devido. Era urgente permanecerem no intermitente, um intervalo que deixava o tempo parar e guardar nas folhas de um diário uma paixão que começava a ganhar as cores de um qualquer semáforo de rua.
Encontrei a minha amiga M. ontem. Estava na avenida a alimentar os patos que se aproximavam da pérgula com avidez. Achei-a distante, com o olhar vago entre as águas de um rio que corria devagar e um céu que se pintava de azul. Não deu pela minha presença quando me aproximei mas, ao ver-me, esboçou um sorriso. Percebi que não era o mesmo de antigamente.
Convidei-a para um café. Aceitou de imediato e fomos andando, lado a lado, sob os castanheiros que enfeitam os beirais do longo passeio da avenida. O sol tinha despontado neste domingo, escondia-se por entre as árvores do jardim onde famílias inteiras passeavam e os velhinhos se sentavam nos bancos frente aos canteiros floridos.
Sentámo-nos numa mesa do lado de lá da esplanada, junto ao rio, onde o sol nos ia protegendo do frio e aquecendo o corpo e a alma.
Pedi um café para duas, acendi um cigarro e perguntei à M. se queria desabafar.
Disse-me que sentia uma tristeza que lhe rasgava a alma, que tinha medo do amanhã. Falou-me da retrospectiva que fez da sua vida, que não era a que queria ter tido, que gostaria que tudo tivesse sido diferente. Contou-me as coisas que queria ter feito e não fez, os objectivos de vida que teve e não se cumpriram. Disse-me o quanto gostaria de ter conhecido outros povos, outras culturas, outros climas, sentir outros cheiros, ver outras cores. Viagens que idealizou e que se ficaram apenas pela descoberta das imagens que a televisão e o computador nos mostram. Falou-me das crenças que tinha e que deixaram de existir, das lutas em vão por dias melhores, da solidão. Sim, a minha amiga M. falou-me de solidão. Disse-me que se sentia só, mas resignada. Não se imaginaria, sequer, em qualquer outra situação que não fosse essa, tamanha tinha sido a sua entrega a uma vida que se fechara para o mundo. Falou-me dos dias e das horas solitárias enquanto o planeta gira lá fora, injusto e catastrófico às mãos do egoísmo e ganância do Homem. Disse-me que a amedronta ficar assim, a assistir ao desabar do mundo sem ninguém por perto. Contou-me que, a cada manhã, deseja encarnar uma outra personagem, qualquer uma que não ela. Alguém completamente diferente, mas que lhe permita voltar a ter a vivacidade que sempre a acompanhou, o sorriso aberto, as gargalhadas e aquela vontade de viver sempre inquebrável. 'Sinto-me perdida. O meu espírito está indiferente e a minha alma errante', confessou. Perdida, sim. Notei-o desde que a encontrara, mas mostrava-se adaptada e aparentemente bem. Mas o mundo não precisava de saber que a tristeza lhe dilacerava a alma e o coração. Sentia-se despedaçada, sem rumo, ausente, distante.
Ouvi-a atentamente, uma lágrima caía-me pelo rosto a cada palavra sua. A voz tremia-lhe a cada sentimento revelado, mas não chorou. Disse-me que as lágrimas secaram do tanto que caíram ao longo dos tempos. Falou-me de saudade, daquela que a acompanha a cada instante, saudade de quem foi. Contou-me do papel que desempenha todos os dias, da vontade de desistir e partir em busca de algo que a liberte.
Confessou-me o que gostaria de ter sido. Talvez um pássaro. Poderia ter sido uma gaivota, uma andorinha, um falcão, um corvo. Queria ter tido uma outra vida, vivido uma outra história, pertencido a um outro destino. Gostaria de ter percorrido uma outra estrada, traçado um outro rumo, seguido numa outra viajem. Queria ter pisado um outro chão, vivido num outro lugar. Gostaria de ter tido uma outra alma, um outro coração, uma outra mente, outros sentidos.
Não consegui interrompê-la no seu desabafo. Senti um nó na garganta e um arrepio na pele. As palavras escondidas por detrás de um rosto cansado desprendiam-se agora, soltavam-se a cada raio de sol que incidia sobre o nosso lugar.
'Queria que tudo tivesse sido tão diferente', disse no final do desabafo. E sorriu, como se aquele momento a tivesse ajudado a ganhar força para enfrentar qualquer batalha que se lhe deparasse. Porque faz tanta falta um ombro amigo, alguém que ouça mesmo que em silêncio. Basta escutar, porque esse gesto é demasiado importante e demonstra que pode existir sempre alguém que, em determinados momentos e por algum tempo, consegue ajudar a quebrar qualquer solidão.
Acordei no mais frio domingo de Inverno dos últimos tempos. Olhei pela janela do quarto, observei a serra escondida para lá da chuva que caía sem cessar. A manhã estava imensamente triste, de tal forma que me transmitiu uma intensa nostalgia. Vagueei pela casa, preparei-me para as lides domésticas e subi a longa escadaria até ao sótão. Seria essa a divisão à qual me dedicaria naquele dia cinzento. Afinal, há muito tempo que não cumpria a tarefa de limpar o velho sótão onde, tantas vezes, me refugiei quando criança. Ao fim de subir os degraus que separavam o meu ninho do amplo recanto onde abundavam antiguidades, recordações de um passado longínquo, parei para retomar o fôlego e preparar-me para a labuta que se adivinhava. Aproximei-me da janela, abri-a de par em par e imaginei a avenida onde nasci coberta de lilases que deixavam um cheiro fresco como que num dia de Primavera. Peguei no pano para iniciar a limpeza ao pó que se avistava nos móveis velhos, outrora pertencentes à parte inferior da habitação. Ao atravessar o amplo espaço construído de madeira, tropecei na velha arca de verga que pintei de azul há muitos anos atrás, agora encostada a um dos cantos do sótão.
'A velha arca azul, de memórias antigas guardadas. É mesmo por aqui que vou começar', pensei. Baixei-me devagar e abri a arca cuidadosamente, talvez com receio do saudosismo que me pudesse transmitir.
Bem no topo, por cima de postais do primeiro namorado, diários de aventuras da minha adolescência, livros de autógrafos de colegas de escola, cadernos e provas dos tempos de estudante, encontrava-se um saquinho de serapilheira natural fechado com um laço castanho. Desembrulhei o atilho e retirei do seu interior uma caixa de cartão reciclado, de cor bege, com uma textura refinada e uma flor em relevo num dos cantos da tampa. Segurei a pequena caixa nas minhas duas mãos, senti o cheiro doce que mantinha e abri-a delicadamente. Dentro da caixa, pousada num baralho de tarô, uma pequena carta semiaberta, outrora lacrada, deixava mostrar uma letra fina e inclinada. Senti-me regressar ao passado numa velocidade extrema.
'4 de Outubro de 2003. Recebi este baralho de tarô em 1996 e, na altura, disseram-me que me iria ajudar. Hoje, nada tenho de feiticeiro e este baralho já me ajudou bastante. Espero que faça o mesmo por ti. Um grande abraço de parabéns, neste dia tão especial.'
Feiticeiro, meu amigo eterno, fazes-me tanta falta. Pensei e cerrei as pálpebras com força. Naquele instante parou o tempo, esqueci-me da chuva e do frio lá fora, perdi a vontade de limpar. Viajei nos anos, fui ao encontro do maior amigo da minha vida. Vieram-me à memória as longas conversas que tivemos, as palavras que tão carinhosamente dissemos um ao outro, os segredos que revelámos, os mistérios que desvendámos, a lealdade que ficou entre nós. Almas unidas, corpos separados por um baralho de cartas que se cruzava por entre as nossas opiniões divergentes mas tão saudavelmente expostas em cima de uma mesa de amizade.
Passaram bastantes anos, demasiados até, mas o sentimento entre nós mantém-se inalterável apesar da distância geográfica que nos separa. Guardo até hoje, guardarei até sempre a pequena caixa, o baralho de tarô e a carta lacrada com um sentimento tão especial que, creio, não conseguirá caber no mundo inteiro. Acredito, tal como o maior amigo da minha vida me confessou um dia, que pudemos ter sido numa outra vida talvez irmãos, talvez amantes. Que um sentimento muito forte nos une desde o primeiro dia em que o nosso olhar se cruzou.
As cartas de tarô estão por lançar, esperam que o feiticeiro da minha vida volte para ler o meu destino.
Ontem, pediste-me para ficar. Mas eu saí apressada, na minha condição de não voltar. Caminhei sem rumo, perdi-me nas horas. Sentei-me junto ao rio que passa no jardim onde deixei guardados pedaços da minha felicidade. Lá, bem perto do céu, senti a luz do sol afagar-me o rosto ao mesmo tempo que a chuva caía sem cessar sobre o meu corpo. O vento insistiu em trazer consigo as palavras que disseste antes de partir. Gosto de ti, sussurraste. Mas eu saí sem olhar para trás. Esqueci o beijo que não demos, aquele que me pediste baixinho mas que não conseguiste roubar-me. Lembras-te?
'Não me afastes assim da tua vida'.
Sabes? As palavras também nascem, crescem, vivem e morrem.