Longe do Mundo
Encontrava-me na praia da velha vila onde passara tantos verões da minha adolescência. O areal era extenso, do seu lado esquerdo uma pequena baía cruzava-se com o mar. Ao longe, alguém deslizava numa prancha sobre as ondas que se iam tornando maiores, debaixo de um sol que se punha devagar no horizonte. O cenário era deslumbrante, sublime, talvez o mais belo fim de dia a que tinha tido o privilégio de assistir.
A praia estava deserta, apenas eu sentada na areia fresca que ia envolvendo na palma da mão. Deixei-me ficar até o frio apertar e a noite cerrar. Olhei para o céu, vi a lua esconder-se por detrás de nuvens negras que passavam apressadas. Era o início de mais uma noite rigorosa de Inverno. As luzes das ruas típicas da vila começavam a ganhar vida, reflectiam-se num mar que se tornara gélido como a noite.
Fui até ao bar da praia, sentei-me junto à janela à média luz, pedi um martini e acendi um cigarro. Não havia ninguém para além do dono do bar, um velho pescador que vivia numa pequena cabana a alguns metros dali. Havia música a tocar, um misto de blues e jazz que faziam lembrar-me os filmes dos anos quarenta e cinquenta. Olhei pela janela, vislumbrei ao longe um clarão súbito que se cruzou entre o céu e o mar. Senti-me deslumbrada por aquela luz intensa que brilhou por instantes e imediatamente se desvaneceu. Fez-se silêncio e tudo escureceu. Apagaram-se as luzes, a música deixou de tocar, a velha vila ficou sombria. Lá fora escutava-se a canção do mar, ouvia-se o uivo do vento.
Saí do bar, guiei-me pela luz do isqueiro que trazia sempre comigo e, na penumbra da noite, dirigi-me à casa de férias de outrora, agora desabitada. Ficava do outro lado da vila, perto do porto de abrigo. Ao chegar, entrei pelo quintal abandonado onde se encontrava o velho barracão, local onde não voltara a entrar desde há muitos anos. Parei a olhá-lo, senti o coração bater forte e recuei. Fiquei assim durante breves instantes, talvez fosse melhor partir e não voltar. Não queria recordar o passado, seria demasiado doloroso.
A noite permanecia escura, uma chuva fria começava a cair fortemente, gatos miavam nos telhados, mas não havia ninguém. Imaginei ouvir vozes vizinhas por perto, passos vagarosos na calçada, mas as ruas estavam desertas. Apenas eu me encontrava na vila no meio de uma noite tenebrosa. Por momentos, senti medo. O meu telemóvel deixara de funcionar, as casas em redor estavam fechadas, os cafés encerrados. Mas medo porquê, medo de quê? Ali crescera em cada Verão do passado, ali morava a minha alma, pedaços de mim guardados num tempo que não mais se repetira. Naquele dia estava só, sim, mas era assim que me encontrava, era assim que queria ficar.
Levei a mão ao bolso do casaco que me aquecia o corpo, toquei na chave da porta de entrada e fui até ao alpendre. Tive dificuldade em abri-la, era intenso o escuro da noite. O isqueiro que me guiara também já não funcionava, não havia luz para iluminar o espaço, estava tudo tão sombrio. Depois de algum tempo, consegui abrir a porta e fui tacteando paredes, tocando nos móveis cobertos por lençóis brancos. Lembrei-me que havia sempre fósforos na cozinha, a um canto da mesa de refeições. Ao encontrar uma caixa, acendi um e percorri a casa em busca da chave do barracão.
Subi a escadaria que dava ao primeiro andar ao mesmo tempo que ia recordando momentos. A cada degrau que subia, sorrisos e gargalhadas vinham-me à memória. Tantos verões passados ali, em família, na mais perfeita harmonia.
Encontrei a chave do barracão no meu quarto antigo. Estava dentro da gaveta da mesa de cabeceira. Agarrei-a e apertei-a bem dentro da minha mão, senti-me queimar na força da chama de um fósforo que chegava ao fim. Acendi outro e procurei velas. Sabia que estavam lá, espalhadas pelo quarto. Desde miúda que gostava do atear de uma vela, pela luz que deixava, pelo cheiro que emanava.
Desci as escadas apressada, fiquei com medo que o mundo acabasse, saí à rua e corri até ao velho barracão. Não havia lua, permanecia escondida num céu sem cor, a chuva e o frio eram cortantes e a escuridão maior. Mas eu sabia de cor o caminho que, antigamente, percorrera vezes sem fim. Perdi o medo, atravessei o quintal e abri o portão com sofreguidão. Senti a minha mão tremer enquanto a chave rodava na fechadura mas, finalmente, abriu-se o portão.
A sala era ampla e vazia. Duas largas colunas apoiavam um tecto amarelecido pelo tempo, decorado agora por uma imensidão de teias de aranha. Cada parede era coberta por um espelho à excepção de uma, composta por uma vidraça que a atravessava de uma ponta à outra. Acendi uma vela e pousei-a no chão revestido a soalho, totalmente empoeirado. Vi a minha imagem sombria reflectida no espelho embaciado pelo tempo. O meu cabelo estava molhado, o meu corpo encharcado da chuva que caía lá fora sem cessar. Já não era a mesma, não voltaria a ser. Olhei para um dos cantos da sala. Encostado à parede, um rádio gravador coberto de pó adormecera naquele lugar escuro, longe do mundo. Aproximei-me dele, toquei-lhe suavemente, queria ligá-lo mas não havia luz. Carreguei no botão do play na esperança que ainda trabalhasse e a música começou a tocar. As pilhas do velho gravador funcionavam como que por magia.
Fame
I'm gonna live forever
I'm gonna learn how to fly... high...
Estaria a sonhar? Senti-me incrédula perante tamanho mistério. Talvez estivesse, sim, no meio de um sonho. Dei, então, início a alguns passos de dança lentos, imaginei-me menina outra vez, eterna bailarina.
'Dança, sonho meu, onde foi que te perdi?', perguntei-me baixinho e uma lágrima caiu-me pelo rosto cansado, com marcas de um passado jamais esquecido, onde a dança tinha sido a minha companheira de viagem.
Naquela noite escura, a chuva inundou as ruas do centro da vila, o mar escondeu o areal. Eu permaneci no velho barracão, longe da vida lá fora, perto do mundo que inventei só para mim. Extinguiu-se a última vela, a música continuou a tocar e eu deixei-me ficar, entregue a uma dança singular, na escuridão de uma noite chuvosa e gélida de Inverno que se prolongou até ao romper do dia.
(Texto escrito para a Fábrica de Histórias)