Aqui, de onde vos escrevo...
Aqui, de onde vos escrevo, sente-se um aroma tradicional do incenso que vou espalhando pela casa.
Tu entras devagar, à tardinha, beijas-me a testa em sinal de apreço e deixas-me divagar.
Os meus dedos dançam por entre as teclas do computador da secretária colocada num recanto da sala ampla onde tu, sentado no sofá chaise-longue de tecido castanho escuro e preto, assistes a um filme romântico.
Inspiro-me ao som da banda sonora, uma música sublime de Jack Nitzsche. Observas as paredes cruas decoradas com telas criadas por mim, umas abstractas outras paisagísticas, que contrastam na perfeição com a arte africana que as completa.
Do outro lado da sala, cortinados laranja percorrem a ampla janela de onde avisto o castelo da minha cidade. No final do filme levantas-te, afastas a cortina e contemplas a paisagem num silêncio absoluto.
Voltas a sentar-te, desta vez no sofá amarelo que está junto à janela, coberto de almofadas pretas e laranja, e poisas os pés na alcatifa que cobre parte do chão em tijoleira. Tem um misto de cores que embeleza o espaço. Castanhos, bordeaux, laranjas.
A meio da sala, pendurado no tecto, um espanta espíritos. Metade sol metade lua, deixa soltar aquele som peculiar de quando se entra numa típica loja chinesa de antiguidades. Levantas-te, consegues tocá-lo com os teus cabelos e o tom das canas de bambu acaba por soar.
Olhas o cavalete a um canto da sala com uma tela de nós meio pintada. Aspiras o cheiro suave a guache e pegas num pincel. Sentes a tinta ressequida e perguntas-me porque não voltei a pintar. Encolho os ombros, permaneço nas minhas divagações e tu aproximas-te de mim. Enrolas os teus braços no meu pescoço, beijas-me o cabelo e deixas-me ficar, absorta, na minha escrita.
Há velas, muitas velas. Acendes uma com aroma a baunilha e eu inalo o cheirinho doce que me acalenta a alma e me faz sussurrar as palavras que escrevo.
Escolho a música que me faz voar e aumento o volume da aparelhagem escondida na parte inferior da secretária onde me sento. O Purple Rain de Prince quebra o silêncio que existe entre nós e eu escrevo, sem parar. Surgem imagens vindas do meu imaginário, nascem histórias que lanço para vós.
Passeias pela sala e eu continuo aqui, no mesmo lugar. Paras junto ao móvel de cerejeira maciça, frente ao sofá chaise-longue, onde estão arrumados os livros que trouxe de casa da minha mãe. Alguns de poetas e romancistas que admiro, outros que me transmitem algo. Pegas num daqueles onde mora o meu nome, romances escritos por mim com onze anos apenas.
Folheias o álbum de fotografias, arrumado numa das prateleiras, que guarda as minhas melhores recordações e abres um baú de madeira onde arrecado momentos. Ao lado, um poema emoldurado da minha avó dedicado a mim.
Há um candeeiro de pé alto num dos cantos da sala, que ilumina baixinho os retratos expostos numa pequena camilha. Uns meus, outros de quem me é querido, onde estão marcados os nossos sorrisos. Agarras em cada um deles e sorris também.
Passam as horas, pegas no puff preto colocado sobre a alcatifa multicolor e sentas-te a meu lado. Encontras uma folha de papel amarelecida pelo tempo, perdida no porta revistas de ferro forjado pousado no chão entre o cavalete e o sofá amarelo, e lês aquela carta antiga que escrevi para ti.
Agarras-me a mão com uma força excessivamente grande, admiras a sala de uma ponta à outra, murmuras a palavra oriental e desapareces no silêncio da noite deixando no ar um rasto de ti.
Aqui, de onde vos escrevo, a saudade tem cor e presença. Aqui, neste meu cantinho, escrevo por entre luz, aromas, sons, pinceladas, memórias e fantasias.
(Texto escrito para a Fábrica de Histórias)