30 de Fevereiro
Num qualquer dia trinta de Fevereiro cruzei-me comigo mesma por entre caminhos assombrados. Em cada um deles uma imagem, um ruído. Percorri espaços estreitos vezes sem fim. Em cada esquina braços estendidos tentavam alcançar-me, vozes em uníssono faziam soar o meu nome. Risos sarcásticos ouviam-se ao longe, gargalhadas repetidas por entre muros erguidos do vazio. Gritos doentios ecoavam sem parar, rostos alucinados cruzavam-se à pressa por entre a escuridão. Surgiam fantasmas de todos os lados, silhuetas disformes chamavam por mim.
Perdi o rumo, esqueci a minha identidade. Estradas sem saída, direcções cruzadas por entre o desconhecido. Perdi-me do mundo, entrei em delírio e atravessei o labirinto repetidamente, sem parar. Uma sombra vinda do nada acenou-me num adeus incessante. Não sei quem era, não sei o seu nome.
Parei, exausta. Respirei ofegante e estendi-me no chão frio num completo desvario. Adormeci num sono agitado. Passaram as horas, os dias, os meses. Os anos ficaram suspensos num passado ignorado. Memórias em branco perdidas aqui e ali, num lugar qualquer que não existia.
O meu corpo esguio manteve-se inerte à espera de luz e silêncio. E o tempo correu veloz.
Muito tempo depois, tanto que não sei quanto, num qualquer dia trinta de Fevereiro, um pedaço de sol despontou por entre as nuvens que ofuscavam o labirinto. O dia era o mesmo, a noite também, passagens de uma história vivida num sono demorado onde o surreal tinha tido o papel principal.
Nesse mesmo dia, a trinta de Fevereiro, encontrei a saída e descobri um mundo novo.
O sol punha-se num horizonte onde as cores se misturavam de uma forma mágica. A chuva caía, gotas de púrpura cruzavam-se com raios de um sol cor de rosa. O céu atravessava o mar por entre um fogo generoso e assim nascia a noite, quente como eu sempre gostara. Conseguia vislumbrar uma lua azul e as estrelas dançavam no céu pintadas de arco íris. Senti o aroma do iodo que se espalhava no ar por entre um vento que começava a ganhar rosto. Tinha o olhar do silêncio e o sorriso de uma nuvem. Afundei os pés numa areia que passou de dourada a branca como a neve e mergulhei numa liberdade que nunca sentira. Consegui tocar-lhe, tinha cor, era rubra como a mais tórrida das paixões.
Senti-me levitar e voei, dancei sobre um mar transparente no qual me estendi. Vi-me num cenário de ondas de cristal frente a uma plateia de corais onde os fantasmas do meu sono se transformavam em sonhadores como eu, ganhavam asas e voavam até à ilha que inventámos juntos. Os gritos doentios de outrora davam lugar a cânticos suaves nunca antes escutados, os risos sarcásticos eram agora sorrisos ternos, tão ternos que me pareciam algo transcendental. As silhuetas disformes surgiam perfeitas e frágeis, vestidas da cor da paz.
Naquele dia trinta de Fevereiro, elevei-me na fantasia de uma dança eterna na praia. E pedi ao calendário da vida:
'Não acabes, dia trinta de Fevereiro, não acabes e deixa-te ficar comigo, deixa-me ficar contigo, deixa-me ficar aqui, deixa-me ficar assim.'
E o tempo parou num abraço entre o pesadelo e o sonho, tão reais como um dia qualquer que não existe, nascido do mais belo feitiço a que pude assistir.
(Parte do texto foi escrito em 13 de Agosto de 2009 e agora adaptado para a Fábrica de Histórias)