'Não é o sol que faz a sombra'
Silêncio. Quero silêncio, diz a minha mente ensurdecida pelo sopro arrogante do vento que entra, num tumulto, pelas frestas da minha casa quase vazia e sem cor.
Mas o meu silêncio é astuto e intocável, envolve a minha solidão como uma bruma, veste-me de cinza e purifica de uma forma enganadora o meu corpo enegrecido pelas multidões.
E eu quero viver depressa, mas o meu silêncio assusta-me. É oco como o sossego que me acolhe, melancólico como a inércia dos meus gestos, funesto como os meus fantasmas mais recônditos, vago como a minha apatia pelos amanheceres no asfalto.
Eu quero silêncio, sim, mas tenho medo. Medo da sombra deste silêncio sedutor que atraiçoa as horas das minhas noites, ganha voz a cada segundo dos meus minutos e me segreda num beijo que tento evitar:
- Escreve sempre que o teu coração palpitar e a tua alma ditar, mas em silêncio. Tacteia as palavras no papel e deixa-te ficar aqui, onde a beleza do nada te sustém. Porque a sombra de que falas sou eu e chamam-me cegueira. A cegueira que se alimenta dos teus passos que dançam na procura da música que deixou simplesmente de tocar. É esta a melodia do silêncio, a do teu silêncio.
E o outro eu, o que não fala mas ouve e vê, geme num sufoco que ecoa pela casa e a sombra cega pára, atenta, ao meu lamento que se solta:
- Mas eu quero o silêncio das areias. É brando e cristalino, salpica-me a pele e a alma com a frescura das marés nos fins de tarde.
(Texto construído para a Fábrica de Histórias à volta do provérbio: Não é o sol que faz a sombra)
imagem retirada de: http://fotos.sapo.pt/