Amor solitário
"Por todo o atelier pairava o aroma intenso das rosas e quando a branda aragem estival corria por entre as árvores do jardim, entrava pela porta a fragrância carregada do lilás, ou ainda o perfume delicado do espinheiro de floração rósea. Estendido no divã de bolsas de seda persas, a fumar, como era seu costume, cigarro após cigarro, Lord Henry Wotton só conseguia vislumbrar do seu canto as flores adocicadas e cor de mel de um laburno, cujos ramos trémulos pareciam mal poder suportar o peso de beleza tão fulgurante."
"O retrato de Dorian Gray", Oscar Wilde
(...)
Solitário. Sou um solitário. Por onde andas, querida Lauren? Partiste com o vento numa manhã quente de Outubro, desapareceste por entre as searas que estão para lá do jardim e não voltaste. Nesta casa permanece o teu cheiro, aquele que ficava agarrado à minha pele sempre que me abraçavas.
Esperaste por mim tantos anos depois de todas as minhas promessas, agora sou eu quem espera por ti. Perdoa-me, meu amor, por não ter cumprido tudo o que inventámos para nós.
Eras mais velha que eu, mas emanavas juventude. Acho que me apaixonei pela tua força de viver, pela tua inocente rebeldia e alegria contagiantes. Lembro-me do teu sorriso, quebrava qualquer ausência nossa e a tristeza quase insuportável de não poder estar a teu lado tornava-se menor. E tu, Lauren, eras tão imensamente leal.
Para lá da janela, o aroma quente das searas aproxima-se agora de mansinho com a aragem fresca dos fins de tarde e eu pressinto-te chegar. Vejo uma sombra, pareces-me tu, irradias felicidade e vens ao meu encontro. Sempre gostaste de correr pelas searas, sentias o sublime sabor da liberdade. Mas não, não és tu que vejo. É a minha imaginação. Estou velho e cansado e esta espera incessante de ti perturba-me e sinto-me alucinar. Quero arrancar daqui este silêncio sufocante, rasga-me a pele e fere-me a alma. Fazes-me tanta falta.
Acendo mais um cigarro, quero afastar este aroma a flores que invade o atelier e me destrói por dentro por não estares aqui. Rosas, adoravas rosas e, desde há muitos anos, encomendo um ramo vermelho todos os dias na florista e enfeito este lugar que é tão teu. E volto a pintar. Pinto-te a ti, pinto-me a mim, pinto-nos a nós com as cores de um crepúsculo tão nosso, meu amor.
Estranho, deves pensar. Mas, sabes? Resolvi seguir o teu sonho e comecei a pintar. Um dia, acordei a pensar em ti como todos os dias desde que partiste, saí de casa, fui à lojinha de artes que fica no fundo da rua e comprei guaches e aguarelas, pincéis, telas e cavaletes. No lugar da sala criei um atelier, nas paredes estão os quadros que fui pintando ao longo dos tempos. Um dia, se voltares, mostro-te a tela que me ofereceste, incompleta, onde estão desenhados os nossos corpos. Quase consegui terminá-la e está exposta junto à janela que dá para o jardim, perto das tuas searas. Todos os dias olho para ela, admiro-a durante horas a fio como que a imaginar o momento em que, juntos, pintaremos o cenário que lhe falta.
Pareço um miúdo enamorado como quando me apaixonei por ti naquela tarde, há quarenta e quatro anos atrás. Lembras-te? Éramos tão jovens e eu, muito mais que tu. Será que um dia estarei cá para ver-te chegar? Se esse dia acontecer, deixo-te esta declaração de todo o meu amor por ti e que nunca chegaste a perceber, ou a acreditar.
E agora, que me resta? Restam-me flores, aromas, sabores e pinceladas. Cada um(a) dele(a)s é um pedaço de ti e da tua juventude que creio ser eterna porque, dizem, não envelheceste. Olho para o meu auto-retrato, vejo um homem jovem e bonito. Será que também eu não envelheci para te receber, em todo o meu fulgor, no teu regresso? Não. É desvario meu, apenas desvario. E assim ficarei, perdido nesta beleza quase transcendental, completamente só e sem ti, Lauren, minha amada Lauren.
Teu até sempre.
D.
(Texto escrito para a Fábrica de Histórias)