Palavras para uma imagem - A noite estrelada
( A noite estrelada de Vincent van Gogh)
- Preciso de subir ao céu e pintar as estrelas - disseste-me num passado que se me depara tão longínquo.
E continuaste a falar com um sorriso soberbamente indecifrável, sentado na tua poltrona gasta pelo tempo, de olhos fechados como que num delírio consciente.
- Preciso de fugir do tumulto das cidades e ficar no silêncio que separa a realidade do infinito. Quero a utopia do intocável, sentir a velocidade dos ventos que vêm com o sol quando se junta à lua e fica a seu lado nas noites. Quero sentar-me nas nuvens que correm devagar e assombram a terra molhada, pelas lágrimas dos deuses que choram a cantar. Quero mudar as cores do firmamento.
Ficaste em silêncio por breves instantes, pareceram-me quase eternos, era um silêncio assustador mas imensamente celestial. Depois, prosseguiste na tua deslumbrante divagação.
- Quero que a lua e as estrelas se tornem amarelas, o amarelo é a cor da alegria, e o céu seja da cor do fogo para aquecer as almas frias que vagueiam na incerteza do destino. Vais buscar o teu violino e tocas aquela música que faz o pincel pular por entre os meus dedos manchados de tinta a óleo e me ajuda, na sua fascinante melodia, a criar este cenário?
Ainda me lembro de me piscares o olho no teu semblante matreiro, misto de inocência e maturidade. Misterioso, tu, tão angustiado com a vida que corria lá fora.
- No canto inferior direito da tela ficará a velha igreja que fez gerar em mim o amor incondicional a esta arte e, ao lado, pintarei a livraria pela qual não me deixei ensinar, do tão pouco que li. Afinal, acabei por ser quem não queria, uma sombra perdida na luz dos caminhos.
Senti o silêncio uma vez mais, era profundo como a saudade e vazio como a morte. Vi uma lágrima cair pelo teu rosto abatido pelo passar das idades mas o teu sorriso retornou invulgar, como sempre, e continuaste na tua fantasia.
- No canto inferior esquerdo desenharei a montanha que desejo subir um dia e, do seu cume, tocar o céu com as minhas duas mãos. Sabes? Quero pintar o sol de azul.
Décadas depois, dou por mim a olhar para a tua noite estrelada e penso em ti, meu adorado Van Gogh, tu que partiste tão cedo e não regressaste. Tu és o sol que guarda as estrelas num céu que parece cair e eclodir com a terra e eu vejo-te dançar nessa noite sem fim.
E pintas, pintas até sempre o fascínio das noites e tudo se torna azul, tão azul, sem cidades nem gentes. Adormecem os dias, as noites despertam com a serenidade das madrugadas pintadas de amarelo e o mundo transforma-se em sonho, no teu sonho.
(Texto escrito para a Fábrica de Histórias)