Às vezes, de noite, subo ao telhado do sótão, sento-me a ver as luzes da cidade e o frenesim do fim dos dias e penso que gostava de ficar ali para sempre. O meu sótão é cor de rosa. L.T.
Às vezes, de noite, subo ao telhado do sótão, sento-me a ver as luzes da cidade e o frenesim do fim dos dias e penso que gostava de ficar ali para sempre. O meu sótão é cor de rosa. L.T.
Contigo descobri que não temos a mesma alma. A tua escapou por entre as vísceras do teu coração arrefecido.
Ensinaste-me que não faço parte de ti. E tu não poderás fazer parte da minha vida.
Contigo aprendi que nem o mais grandioso dos amores pode juntar duas pessoas que não têm o mesmo sonho, que não dançam a mesma música. Mesmo aquela que escutam em perfeita sintonia. Não é livre um amor assim.
A nossa música deixou simplesmente de tocar. É hora de esquecer o que não fomos. Ficaram os retalhos perdidos no chão de uma vida apenas. A outra vida és tu e não me pertence.
Fechei o meu coração. Lancei a chave às águas de um rio que corre veloz debaixo da ponte que separa as nossas vidas. Não há retorno. O meu coração está selado.
Mas a minha alma continua a dançar e consegue libertar-se num voo sem limites. E as palavras esperam por mim em volta de uma fogueira numa noite de luar.
Venho pedir-vos que me deixem ser criança até sempre.
Quero acordar de manhã, ficar nos vossos braços durante tempos infindos e receber os mimos que só vocês sabem dar.
Quando o sol brilhar, quero dar as mãos às manas e ir com elas para o quintal jogar à apanhada, ao elástico e saltar à corda.
Quero sentir o padeiro chegar e ir a correr para comer o pãozinho fresco. Sentar-me à mesa da cozinha a ver livros aos quadradinhos e, através da janela aberta de par em par, olhar para a avenida com as árvores recheadas de lilases.
Quero ver as lagartixas passarem rente aos canteiros floridos, apanhar as rosas vermelhas do roseiral, pendurar-me na nespereira e balançar-me até me cansar. Comer as laranjas e as tangerinas fresquinhas e saborosas e respirar o cheirinho da flor de laranjeira na Primavera.
À tardinha, enquanto o sol se vai escondendo lá ao fundo, quero brincar ao jogo das palavras e construir as casinhas de lego que vou inventando.
Quero que me deixem escapar para o olival acima do nosso quintal. Trepar pela figueira grande e esconder-me por entre as árvores enquanto vocês, minhas queridas mãe e avó, chamam por mim. Quero construir uma casinha no meu 'bosque'. É o cantinho onde guardo os meus segredos.
Quero brincar com os nossos gatinhos, apertá-los docemente nos meus braços e não os deixar partir.
Quero ir a pé para a escola sem medo e deixar as portas de casa abertas. Quero aprender a ler, a escrever, a desenhar, a pintar. Quero soltar gargalhadas de alegria nos intervalos e fazer uma roda de harmonia com os meninos e meninas da minha aula.
Depois da escola, quero ir com as manas e os amiguinhos à feira de Março andar no carrossel e nos carrinhos de choque, correr sem parar, cantarolar e comer algodão doce.
Nas férias grandes quero pôr a mochila às costas e, bem cedinho, caminhar saltitante até às piscinas para mergulhar, nadar e fazer golfinhos.
Quero ir à praia respirar o cheirinho do iodo, chapinhar à beira mar e construir castelos na areia até o sol se por.
Nas noites quentes de Verão quero subir ao telhado da nossa casa, sentar-me a ver as estrelas e deixar-me ficar a sentir a luz da lua.
Antes de adormecer quero que me leiam uma história de encantar, querida avó e querida mãe, e no final trocar convosco beijos de ternura.
Quero continuar a ser criança. Quero continuar na inocência, quero continuar a brincar.
A tua filha visitou-me ontem. Já não nos víamos há longos anos e pareceu-me razoavelmente bem. Refeita da dor pela tua perda, trazia consigo um suave sorriso no rosto. Deu-me um abraço longo e apertado. Olhámo-nos em silêncio durante largos minutos.
É parecida contigo e está mais bonita do que nunca. Está prestes a entrar nos cinquenta, mas aquele aparelho rejuvenescedor que comprou há uns tempos devolveu-lhe uns bons anos de vida.
Sentámo-nos a conversar sobre o passado e o presente durante horas infindas. O futuro ficou por falar.
O mundo está diferente, muito diferente.
A natureza mudou de cor e o sol já não brilha. O verde transformou-se em cinzento e o branco ficou preto. Os rios secaram e a areia da praia desapareceu. Sentamo-nos no passeio da avenida para ver um mar que já não é azul. Já não há nascer nem por de sol e o vento sopra mais forte todos os dias.
As casas não têm janelas e as portas são blindadas. Parecem naves espaciais. Os utensílios domésticos foram substituídos por autómatos.
As pessoas têm medo de sair à rua e levam consigo uma arma de defesa quando saem para o emprego que escasseia a cada dia. Vivem dos rendimentos conseguidos ao longo dos anos e assim vão comprando máquinas e mais máquinas.
Os carros foram substituídos por avionetas de alta categoria e o trânsito na estrada diminuiu. A toda a hora se vêem pequenos aviões no ar a deslocarem-se de um lado para o outro. Os frequentes acidentes rodoviários deram lugar a acidentes aéreos.
Os pobres estão cada vez mais pobres, vivem na extrema miséria. Os ricos têm fortunas avultadas e os razoavelmente bem na vida conseguem obter, tardiamente, aparelhos e acessórios de alta tecnologia como uma ajuda preciosa para o dia a dia.
As guerras entre os povos continuam. A ganância sobrepõe-se aos valores, como sempre foi. Isso não mudou. É a ausência repugnante da razão e da justiça.
E o planeta estremece.
É este o mundo que temos hoje. Avançado por um lado, retrógrado por outro. O avanço desmedido derrubou a natureza e tudo perdeu o seu brilho. A ambição levada ao extremo abalou as nossas vidas.
Tenho saudades dos tempos em que tudo era normal apesar de que, nessa altura, o mundo já começava a entrar num desequilíbrio total.
As minhas pernas estão cansadas, mas a minha sanidade mental mantém-se e ainda consigo escrever com a minha letra certinha e arredondada. Sabes que já ninguém escreve à mão?
Está na hora de finalizar este manuscrito. Vou enviar-to por um anjo.
Acreditas que o meu coração ainda bate por ti? Já ninguém ama assim, porque os sentimentos também mudaram. As pessoas estão frias e já não há gestos de ternura.
Lembras-te quando nos vimos pela última vez? Foi há uma vida, mas nesse tempo o sol ainda brilhava. Apesar dos nossos desencontros, havia luz. Agora, é tudo tão sombrio.
As notícias dizem diariamente que o mundo está prestes a acabar.
Calculo que no lugar onde te encontras o ar seja ameno e o ambiente sereno.
Ainda esperas por mim? Tenho tanto para te contar.
Tua até sempre.
Laura"
Levantou-se com dificuldade nos seus noventa e um anos e, apoiada na sua bengala, dirigiu-se ao quarto. Deitou-se na cama e fechou os olhos num sorriso de saudade. Deu um beijo à carta que escrevera e apertou-a de encontro ao peito.
Lá fora, um ruído ensurdecedor no ar e um silêncio assustador em terra. As ruas estavam desertas e o céu não tinha lua.