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O meu sótão é cor de rosa

Às vezes, de noite, subo ao telhado do sótão, sento-me a ver as luzes da cidade e o frenesim do fim dos dias e penso que gostava de ficar ali para sempre. O meu sótão é cor de rosa. Leonor Teixeira, a Ametista

O meu sótão é cor de rosa

Às vezes, de noite, subo ao telhado do sótão, sento-me a ver as luzes da cidade e o frenesim do fim dos dias e penso que gostava de ficar ali para sempre. O meu sótão é cor de rosa. Leonor Teixeira, a Ametista

Esta não é uma história de amor

                                                                   in 'O Despertar dos Silêncios'

 

Estou aqui, sentada frente a um écran que outrora não fazia parte da minha vida e onde agora ficam expressas as minhas divagações, para quem as quiser ler.

Lembro-me que escrevia em folhas de papel timbrado ou nas sebentas da escola, umas vezes com lápis outras com esferográfica. Podia ser azul, preta ou encarnada, o importante era que escrevesse e assim nasciam as letras. E eu escrevia, escrevia sem parar, o meu pensamento flutuava em cada lugar que estivesse, tudo eram palavras que irrompiam e iam ficando desenhadas em rascunhos.

Ainda hoje guardo todas as folhas em que deixei escritos devaneios e desabafos, estão hoje amarelecidas como as antiguidades que se guardam num sótão qualquer, empalidecidas como o tempo vai deixando as nossas vidas.

Acendo um cigarro, eu não queria fumar aqui, mas o frio está cortante na minha varanda com vista sobre a cidade e dentro de casa há um aconchego que me prende, mesmo que amarelecidas fiquem as paredes deste recanto onde a música não pára de tocar e o relógio suspenso se repete no seu compasso apressado.

Recordo o tempo em que escrevia até amanhecer, adormecia quando a vida começava lá fora e a agitação das ruas era a minha tranquilidade. Refugiava-me no conforto dos lençóis e ia acordando, ora com a chuva a cair nas pedras da calçada ora com raios de um sol caloroso, enquanto as palavras surgiam subitamente no meu pensamento e me levantava para deixá-las escritas, não fosse eu esquecê-las durante o sono, sentir a minha imaginação em branco ao acordar.

Vivia entre palavras e pinceladas. Palavras que se soltavam ao palpitar da alma e pinceladas que deixava em cada tela, com cores, muitas cores, aquelas com que quis tingir a minha vida. E assim soltava os meus fantasmas, amava por entre as lágrimas que escorriam sobre as letras que fazia despertar, amava a cada palavra que se erguia dos trechos que ia construindo. Amava a cada misto de cores que colocava na tela e a cada nascer de cenários abstractos e paisagens, aquelas que inventava. 'Assim posso chorar porque ninguém vê, ninguém sabe quem sou', pensava eu.

Tudo eram histórias de amor, essa palavra repetida que deixava rastejar pelo papel, sempre marcada no topo de cada folha em branco, chorada em cada virar de página, gravada em cada tela pincelada. Mas o vento foi mudando de rumo a cada instante dos meus dias e, hoje e agora, eu já não quero escrever histórias de amor.

Quero continuar a escrever, a escrever sem parar todas as horas da minha existência, mas histórias onde o amor é palavra proibida e a dor não pode entrar. Quero continuar a sonhar, mas com um sorriso, por entre as gotas de tinta de uma caneta quase extinta, como que num fogo apagado pela coragem de quem arrisca o destino por cada sopro de vida, cada coração que não pode parar de bater, mas sem descrever uma única história de amor.

Quero perder-me no reino da essência das coisas, sentar-me no seio da beleza que cai em redor das cidades e parar no tempo. Deitar-me na areia de uma praia qualquer e implorar à linha do horizonte que o céu e o mar se beijem a cada pôr de sol. Quero adormecer submersa e, através das águas cálidas de um oceano sereno, ver o céu tornar-se azul a cada alvorada. Quero alcançar as estrelas como nas histórias que escrevi, transformar-me em pássaro, ter asas púrpura de veludo, rosto de lobo, alma cigana, coração de aço e subir à nuvem mais branca e doce.

Quero permanecer assim, como sempre fui. Rebelde, sempre rebelde, com sede de liberdade, com urgência de soltar o grito escondido que trago bem preso no ventre, mas sem chamar pelo amor nas minhas preces. Quero continuar com esta vontade de lutar e vencer ou sair vencida, mas lutar sempre e até sempre. Ser eu, sem medo de demonstrar quem fui, quem sou, o que sei e o que não sei, quem gostaria de ser. Simplesmente genuína, a transbordar de um desejo desmedido de dançar sobre as páginas do livro de histórias que escrevi, tocar o céu e beijar a lua, esconder-me no seu colo.

Tudo em mim é imensurável. O meu amor às letras, a minha rebeldia para deixar falar mais alto a minha alma, a minha força para gritar no silêncio das palavras até me doerem os dedos. É imensamente grande a minha vontade de abraçar todos os livros de poesia, aqueles que dormem na biblioteca do jardim da avenida onde, há muito tempo atrás, arrumei nas prateleiras para descansarem do desfolhar sôfrego em dias de correria. A minha sede de devorá-los com as mãos e com os olhos é tão maior, é uma ânsia que me arrepia a pele do tanto que quero ler e conhecer, do tanto que quero saber sobre os poetas que esquecem o mundo por amor às palavras e deixam no papel, cantadas em verso, as mais belas histórias nunca antes lidas.

E é imensurável, oh se é, a minha capacidade para sonhar acordada e acreditar, para depois desacreditar. É assim que sou. Mas já não quero histórias de amor.

Volto à varanda com vista sobre a cidade, quebrou-se o frio das madrugadas, observo as luzes que se acendem no ocaso e admiro a beleza que brota do esplendor que emanam depois do crepúsculo. Avisto silhuetas ao longe que passeiam, carros que circulam devagar num silêncio apagado pelo canto de uma cigarra que surge como numa noite quente.

Eu quero escrever cada momento, quero escrever sem parar. Conseguir descrever na perfeição o suspiro de um coração liberto e o brilho de um olhar que agradece o privilégio do despertar a cada manhã. Quero descrever em pormenor o momento em que o sol entra na minha vida para me abraçar, qual alma vazia que se preenche ao esquecer a palavra amar.

Fui deixando escritos, ao longo dos tempos, sentimentos de alma, esboços de uma vida, aqueles que se choram e deixam saudade. Histórias, memórias, momentos, sonhos que foram ficando guardados, uns num baú de memórias envoltos num laço de cordel, outros nas páginas do meu Danças em Silêncio, espero que para sempre.

Mas já não quero escrever mais histórias de (des)amor.

 

Cúmplices. Eu e as palavras.

por Leonor Teixeira, a Ametista

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por: Leonor T, a Ametista

img1514942427922(1).jpgo outro lado do sótão

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    De acordo com tudo o que disseste, e mais encantad...

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