Às vezes, de noite, subo ao telhado do sótão, sento-me a ver as luzes da cidade e o frenesim do fim dos dias e penso que gostava de ficar ali para sempre. O meu sótão é cor de rosa. Leonor Teixeira, a Ametista
Às vezes, de noite, subo ao telhado do sótão, sento-me a ver as luzes da cidade e o frenesim do fim dos dias e penso que gostava de ficar ali para sempre. O meu sótão é cor de rosa. Leonor Teixeira, a Ametista
Laura esperou dois mil e sessenta e cinco dias (aproximadamente) por alguém que, afinal, não conhecia.
Foi ao fundo do baú, guardado num canto da antiga sala de costura do velho sótão, agarrou na ametista, saiu de casa e lançou-a ao vento. Pensa que caiu ao rio e foi levada pelas tempestades. Duarte fora a maior (des)ilusão da sua vida e Laura não encontrara o lugar da felicidade.
Mudou de nome e pintou o sótão de cinzento. Pincelou as paredes, o tecto, as portas, os móveis antigos. Abriu a janela, viu o céu da mesma cor e não conseguiu voar. As asas tinham voltado a prender-se aos ramos da árvore que ensombrava o velho sótão, outrora cor de rosa.
Enquanto varria a poeira do passado que estremeceu a sua vida, encontrou um gato preto junto ao baú, que olhava para ela como quem pede carinho maternal. Pegou nele ao colo, passeou com ele, comprou-lhe uma alcofa, educou-o e fez dele sua companhia. Quem sabe não lhe daria sorte, em vez daquele azar tão temido pelos supersticiosos mais convictos?
O nome do gato? Ainda hoje não tem, não vá o destino pregar-lhe mais alguma partida. Afinal, tudo tem a ver com nomes. Laura chama-lhe, apenas, gato preto.
Queria ter escrito sem parar, todas as horas da minha existência num passado recente. O vento entrou na minha vida e mudou de rumo a cada instante dos meus dias.
Eu queria. Queria ter sonhado por entre as gotas de tinta de uma caneta quase extinta, como que num fogo apagado pela coragem de quem arrisca o destino por cada sopro de vida, cada coração que não pode parar de bater.
Queria ter ficado. Queria ter parado no tempo e implorado à linha do horizonte que o céu e o mar se beijassem a cada por de sol. Queria ter adormecido, submersa, e através das águas cálidas de um oceano sereno ver o céu tornar-se azul a cada alvorada.
Queria ter alcançado as estrelas como outrora, transformar-me em pássaro, ter asas púrpura de veludo, rosto de lobo, alma cigana, coração de aço e tocar a nuvem mais branca e doce.
Queria ter permanecido assim, como sempre fora. Rebelde, sempre rebelde, com sede de liberdade, com urgência de soltar o grito escondido que trago bem preso no ventre. Com vontade de lutar e vencer ou sair vencida, mas lutar sempre e até sempre. Ser eu, sem medo de demonstrar quem fui, quem sou, o que sei e o que não sei, quem gostaria de ser. Simplesmente genuína e cheia daquela vontade desmedida de viver em passos de dança até voar.
Tudo em mim é imensurável. O meu amor, o meu saudosismo, a minha rebeldia, a minha força, a minha vontade de abraçar. A minha capacidade para sonhar acordada e acreditar, para depois desacreditar. É assim que sou.
E lá, na varanda com vista sobre a cidade, observei as luzes que se acenderam no ocaso, admirei a beleza que delas nasceu ao formarem-se depois do crepúsculo. Avistei silhuetas ao longe que passeavam, carros que circulavam devagar num silêncio quebrado pelo canto de uma cigarra que surgiu numa noite quente.
Eu queria ter escrito cada momento. Queria ter escrito sem parar. Conseguir descrever na perfeição a dor de um coração rasgado e, ao mesmo tempo, o brilho de um olhar que agradece o privilégio do despertar a cada manhã. Queria descrever em pormenor o momento em que o sol entrou para me abraçar, qual alma vazia que se preencheu por instantes numa noite qualquer, igual a tantas outras.
Obrigada a quem faz parte da minha vida e a quem compreendeu a minha ausência.
Deixo de assinar aquisoufeliz a partir deste momento. E fico ametista.
Porquê Ametista?
Não tem a ver com o mineral em si nem com a sua estrutura. Não tem, também, qualquer tipo de relacionamento com a sua origem nem com o facto de ter sido usada como pedra preciosa pelos antigos egípcios. Também não é pelo significado que lhe foi atribuído na astrologia ou pela mitologia grega a ela associada.
Um dia, ofereci uma Ametista a alguém muito especial... pelo simples valor simbólico que ela pudesse vir a significar. Como talismã, talvez. Não por superstição.
Por acaso, foi uma Ametista. Poderia ter sido uma outra pedra semi-preciosa. Uma Água-marinha, uma Turmalina ou até uma Esmeralda Bruta. Mas foi uma Ametista.
E foi aquela. A primeira que vi, a primeira que toquei. Porque olhei para aquela, entre tantas outras, e senti uma beleza diferente. Não sei se pela sua cor púrpura, se pelo seu brilho. Apenas senti que era aquela.