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O meu sótão é cor de rosa

Às vezes, de noite, subo ao telhado do sótão, sento-me a ver as luzes da cidade e o frenesim do fim dos dias e penso que gostava de ficar ali para sempre. O meu sótão é cor de rosa. Leonor Teixeira, a Ametista

O meu sótão é cor de rosa

Às vezes, de noite, subo ao telhado do sótão, sento-me a ver as luzes da cidade e o frenesim do fim dos dias e penso que gostava de ficar ali para sempre. O meu sótão é cor de rosa. Leonor Teixeira, a Ametista

Esta não é uma história de amor

                                                                   in 'O Despertar dos Silêncios'

 

Estou aqui, sentada frente a um écran que outrora não fazia parte da minha vida e onde agora ficam expressas as minhas divagações, para quem as quiser ler.

Lembro-me que escrevia em folhas de papel timbrado ou nas sebentas da escola, umas vezes com lápis outras com esferográfica. Podia ser azul, preta ou encarnada, o importante era que escrevesse e assim nasciam as letras. E eu escrevia, escrevia sem parar, o meu pensamento flutuava em cada lugar que estivesse, tudo eram palavras que irrompiam e iam ficando desenhadas em rascunhos.

Ainda hoje guardo todas as folhas em que deixei escritos devaneios e desabafos, estão hoje amarelecidas como as antiguidades que se guardam num sótão qualquer, empalidecidas como o tempo vai deixando as nossas vidas.

Acendo um cigarro, eu não queria fumar aqui, mas o frio está cortante na minha varanda com vista sobre a cidade e dentro de casa há um aconchego que me prende, mesmo que amarelecidas fiquem as paredes deste recanto onde a música não pára de tocar e o relógio suspenso se repete no seu compasso apressado.

Recordo o tempo em que escrevia até amanhecer, adormecia quando a vida começava lá fora e a agitação das ruas era a minha tranquilidade. Refugiava-me no conforto dos lençóis e ia acordando, ora com a chuva a cair nas pedras da calçada ora com raios de um sol caloroso, enquanto as palavras surgiam subitamente no meu pensamento e me levantava para deixá-las escritas, não fosse eu esquecê-las durante o sono, sentir a minha imaginação em branco ao acordar.

Vivia entre palavras e pinceladas. Palavras que se soltavam ao palpitar da alma e pinceladas que deixava em cada tela, com cores, muitas cores, aquelas com que quis tingir a minha vida. E assim soltava os meus fantasmas, amava por entre as lágrimas que escorriam sobre as letras que fazia despertar, amava a cada palavra que se erguia dos trechos que ia construindo. Amava a cada misto de cores que colocava na tela e a cada nascer de cenários abstractos e paisagens, aquelas que inventava. 'Assim posso chorar porque ninguém vê, ninguém sabe quem sou', pensava eu.

Tudo eram histórias de amor, essa palavra repetida que deixava rastejar pelo papel, sempre marcada no topo de cada folha em branco, chorada em cada virar de página, gravada em cada tela pincelada. Mas o vento foi mudando de rumo a cada instante dos meus dias e, hoje e agora, eu já não quero escrever histórias de amor.

Quero continuar a escrever, a escrever sem parar todas as horas da minha existência, mas histórias onde o amor é palavra proibida e a dor não pode entrar. Quero continuar a sonhar, mas com um sorriso, por entre as gotas de tinta de uma caneta quase extinta, como que num fogo apagado pela coragem de quem arrisca o destino por cada sopro de vida, cada coração que não pode parar de bater, mas sem descrever uma única história de amor.

Quero perder-me no reino da essência das coisas, sentar-me no seio da beleza que cai em redor das cidades e parar no tempo. Deitar-me na areia de uma praia qualquer e implorar à linha do horizonte que o céu e o mar se beijem a cada pôr de sol. Quero adormecer submersa e, através das águas cálidas de um oceano sereno, ver o céu tornar-se azul a cada alvorada. Quero alcançar as estrelas como nas histórias que escrevi, transformar-me em pássaro, ter asas púrpura de veludo, rosto de lobo, alma cigana, coração de aço e subir à nuvem mais branca e doce.

Quero permanecer assim, como sempre fui. Rebelde, sempre rebelde, com sede de liberdade, com urgência de soltar o grito escondido que trago bem preso no ventre, mas sem chamar pelo amor nas minhas preces. Quero continuar com esta vontade de lutar e vencer ou sair vencida, mas lutar sempre e até sempre. Ser eu, sem medo de demonstrar quem fui, quem sou, o que sei e o que não sei, quem gostaria de ser. Simplesmente genuína, a transbordar de um desejo desmedido de dançar sobre as páginas do livro de histórias que escrevi, tocar o céu e beijar a lua, esconder-me no seu colo.

Tudo em mim é imensurável. O meu amor às letras, a minha rebeldia para deixar falar mais alto a minha alma, a minha força para gritar no silêncio das palavras até me doerem os dedos. É imensamente grande a minha vontade de abraçar todos os livros de poesia, aqueles que dormem na biblioteca do jardim da avenida onde, há muito tempo atrás, arrumei nas prateleiras para descansarem do desfolhar sôfrego em dias de correria. A minha sede de devorá-los com as mãos e com os olhos é tão maior, é uma ânsia que me arrepia a pele do tanto que quero ler e conhecer, do tanto que quero saber sobre os poetas que esquecem o mundo por amor às palavras e deixam no papel, cantadas em verso, as mais belas histórias nunca antes lidas.

E é imensurável, oh se é, a minha capacidade para sonhar acordada e acreditar, para depois desacreditar. É assim que sou. Mas já não quero histórias de amor.

Volto à varanda com vista sobre a cidade, quebrou-se o frio das madrugadas, observo as luzes que se acendem no ocaso e admiro a beleza que brota do esplendor que emanam depois do crepúsculo. Avisto silhuetas ao longe que passeiam, carros que circulam devagar num silêncio apagado pelo canto de uma cigarra que surge como numa noite quente.

Eu quero escrever cada momento, quero escrever sem parar. Conseguir descrever na perfeição o suspiro de um coração liberto e o brilho de um olhar que agradece o privilégio do despertar a cada manhã. Quero descrever em pormenor o momento em que o sol entra na minha vida para me abraçar, qual alma vazia que se preenche ao esquecer a palavra amar.

Fui deixando escritos, ao longo dos tempos, sentimentos de alma, esboços de uma vida, aqueles que se choram e deixam saudade. Histórias, memórias, momentos, sonhos que foram ficando guardados, uns num baú de memórias envoltos num laço de cordel, outros nas páginas do meu Danças em Silêncio, espero que para sempre.

Mas já não quero escrever mais histórias de (des)amor.

 

Cúmplices. Eu e as palavras.

por Leonor Teixeira, a Ametista

Palavras para uma imagem - A torre de babel

A Torre de Babel (1563), Pieter Bruegel

 

Um dia, quero morrer contigo.

Quando subires aos céus e chegares às estrelas, perto do sol e da lua, quero estar a teu lado para, finalmente, renascer.

Hoje a minha alma jaz no velho castelo assombrado, outrora nosso, o meu corpo vagueia pelas ombreiras das portas. As janelas batem nos parapeitos com o vento que sopra voraz, das prateleiras empoeiradas caem os livros antigos que lemos, são iguais às nossas vidas. Há folhas que se soltam do diário da nossa história, espalham-se pelo chão que range a cada passo que dou, esvoaçam por entre as vidraças quebradas pelas correrias do tempo. São como as horas dos dias que nos pertenceram, perderam-se num momento intemporal.

E eu abandono-me. Abandono-me silenciosamente, fujo do passado em direcção incerta, alcanço o barco onde navegámos sem rumo e que morre agora em terra firme depois da procura de um rio que corre turvo. Não consigo tocar nas suas águas, parecem névoas que evaporam ao passar.

Quis devorar o mundo, a terra e os céus. Quis aniquilar este amor, esta paixão (sei lá) e renascer das cinzas. Deixei de saber quem sou e onde pertenço, perdi-me na turbulência dos sentidos e fugi de ti, de todos e de mim. Somos tão diferentes.

O sonho ruiu, o meu, de mim, de ti, de nós. Desmoronou-se o nosso castelo, como se fosse de areia a desfazer-se na maré vaza. E eu, em que me transformei? Em sombra, apenas em sombra.

Refugiada numa torre em ruínas recuso-me respirar, suspiro como que pela última vez, sinto-me perto do que não cheguei a conquistar. Onde ficaste, alma que se perdeu pelas veredas em redor da torre, em atalhos obscuros sem saída? Até no final se repete o desencontro, o nosso, como dois espíritos desconhecidos que se cruzam nas brumas de um labirinto.

Apagam-se as luzes, desvanecem as cores, tudo se torna escuro e tu ficas fantasma do velho castelo. Eu, parto solitária pelas neblinas no instante em que te esqueço e caminho numa nuvem que desceu à terra.

Toco o céu, beijo uma estrela e abraço um anjo num murmúrio: 

- Por enquanto, estou viva. A torre caiu.

 

 

(História construída a partir de textos escritos anteriormente, agora alterados e adaptados para a Fábrica de Histórias)

por Leonor Teixeira, a Ametista

Histórias de Abril

Pedi ao rio das memórias que corresse a meus pés e me deixasse ficar junto às bermas, onde acabam as ausências. E tu vieste até mim numa doce manhã de Abril.

Trazias contigo retalhos de um lugar onde as palavras ficaram, embebidas nas lagoas do tempo, esquecidas pela demora das angústias.

Vieste, despido de encontros, transbordavas emoções do que não viveste e confessaste-te no silêncio dos atalhos.

Colheste uma flor do meu jardim e enfeitaste os meus cabelos, sentiste o aroma a Primavera, ajoelhaste diante de mim e disseste:

'Voltei para ter o teu perdão ou morreria no vazio dos desertos, sem letras e sem sentidos e onde tudo acaba em solidão'.

Acordei de um sonho em fins de Abril. Estava sentada na berma de um rio que corria a meus pés. Ao longe, um deserto envolvia um lago azul onde palavras repetidas dançavam nas areias.

 

  

(Texto escrito em 3 de Dezembro de 2011, adaptado para a Fábrica de Histórias)

por Leonor Teixeira, a Ametista

Palavras para uma imagem - Salão de Baile

  

Moulin de la Galette (1889), Toulouse-Lautrec

 

Os sonhos morreram.

Como se o mundo acabasse no instante, como se o céu caísse sobre os campos e as nuvens flutuassem nos rios. Como se o sol empalidecesse e chorasse, queimando as árvores que crescem e as flores que nascem, secando as águas que correm devagar.

Como se parassem os relógios, terminassem as tardes e as noites surgissem nas manhãs. Como se já não houvesse lua e o chão mergulhasse numa sombra.

Como morrem as palavras. Como se as letras fugissem, desordenadas, dos livros em branco pelas histórias esquecidas. Como se os olhos já não lessem e as mãos já não tocassem nas páginas que ficaram.

Como se os bosques encantados perdessem a magia e as florestas se despissem pelo cessar da vida. Como se os lobos deixassem de uivar e os pássaros ficassem sem asas para voar.

O meu sonho morreu.

Como se os anjos despertassem sobre a terra, como se o luto mudasse de cor e os homens se vestissem de branco. Como se o destino fosse interrompido e os fantasmas dominassem o universo.

Resta-me dançar, de alma pequena mas de corpo inteiro. Como se dançasse num salão de baile, onde as gentes se escondem num atropelo para escapar aos dias mortos. Sucumbem, por entre conversas de silêncio inacabadas e passos de dança frenéticos. E bailam, bailam até ao fim das horas, de olhar vago e sem sorrisos porque a vida fugiu com os sonhos apagados.

Com o meu sonho morreu a minha alma, mas também eu dançarei sofregamente até que o meu corpo tombe e adormeça.

 

 

(Texto escrito para a Fábrica de Histórias)

por Leonor Teixeira, a Ametista

Memórias de Primavera

Lembro-me, lembro-me, oh se me lembro. Saudosamente.

As glicínias enfeitavam a pérgula e coloriam as pedras da calçada no seu reflexo com o sol, as árvores cheiravam a arco-íris e a avenida transformava-se num jardim de aromas doces.

Eu ia buscar a minha bicicleta encarnada e andava em redor dos canteiros onde as flores desabrochavam a sorrir. Nas bermas do rio os namoros despertavam, eu sentava-me na ponte debruçada sobre as águas e, descalça, sentia o refrescar das manhãs pelo chapinhar dos patos. Depois, rebolava pelo relvado onde as plantas trepadeiras se beijavam.

Voltava para casa numa correria, dançava pelos quintais perfumados pela flor de laranjeira e subia às árvores a cantar. Apanhava laranjas e tangerinas, pulava pelos telhados e brincava com os gatos que passavam a vadiar.

Saltava à corda, jogava à macaca e, nos fins de tarde, ia para o sótão construir castelos de lego. À noitinha, inventava sonhos no cintilar das estrelas e escrevinhava pequenos contos de príncipes e princesas sob o roseiral a florir.

E lembro-me, lembro-me nostalgicamente. Da minha mãe me embalar no seu colo a cada luar, acariciar os meus cabelos e contar-me histórias de encantar para eu adormecer. Era tudo tão suave.

Em tempos de feira de Março, levava-me a andar de carrossel com as minhas irmãs e, juntas, comíamos algodão doce por entre as gentes que passeavam numa alegria contagiante. Lembro-me dos rostos, do brilho nos olhares e do rasgo dos sorrisos.

Lembro-me, oh se me lembro de, num dia primaveril, lhe dizer:

- Mãe, não quero crescer.

 

 

(Texto escrito para a Fábrica de Histórias)

por Leonor Teixeira, a Ametista

Fazes-me falta (uma história piegas)

Amo-te acima de todas as coisas, mas sinto-me amarrada a um abandono extremo que me rompe as entranhas.

A minha alma está despedaçada, quebrou-se ao perder-te à chegada, tu que surgiste no meu caminho sem o destino avisar, tu que me fizeste acreditar que vale a pena esperar pela entrega no seu todo e vivê-la soberbamente porque, disseste-me tu, temos todo o tempo do mundo. Lembras-te?

Tu, sim tu, que estás aí do outro lado da ponte que nos separa, tu que me ensinaste a crer que existe uma estrada colorida que nos espera, tu que te repetes no adjectivo bonita e te declaras por entre as letras daquele verbo que conjugas na perfeição, me toca na sua profundez e me acelera o coração. Aquela palavra, adoro-te, talvez a mais banalizada mas a mais bela de todas as palavras e que eleva todos os sentidos.

E agora estou aqui, perdida na minha embriaguez de viver-te por completo, de tocar a tua pele, de ter-te a meu lado e ficar assim, suspensa num mundo que não é o meu e aqui permaneço, viva para ti, no lugar que é teu mas sem rumo à vista, eu que tanto te choro. E questiono-me, pergunto aos mestres da sorte e do infortúnio, donos dos mistérios da vida, a razão deste lamento que me sufoca e, ao mesmo tempo, me obriga a respirar a todo o custo porque és tu quem quero, és tu quem me preenche ou, já nem sei, se não serás a razão deste vazio que tomou posse de mim, da angústia que bateu à minha porta e entrou de rompante sem pedir licença.

O cinzeiro transborda de pontas dos cigarros que já fumei, as garrafas de vinho estão vazias, quem dera que fosse por um brinde entre nós mas que não aconteceu. Afogo-me na tentativa de afastar de mim este engano mas não consigo esquecer que existes, não consigo apagar o teu nome. E dói-me, dói-me sentir-te por perto e não poder abraçar-te, é uma dor quase insuportável, é como morrer devagar com o remédio mesmo a meu lado mas não conseguir alcançá-lo e não há mais nada que possa minorar este mal, não há nada a fazer. Nada.

Arrancaram as asas da minha libertação, sinto-me prisioneira de um amor morto à nascença, vagueio sem rumo e consigo avistar um túnel mas não tem luz, é escuro como breu, não alcanço mais nada para além de uma lacuna e não há saída. É como estar perdida num labirinto, despida de amor próprio, completamente nua e conseguir ouvir a tua voz ecoar sobre o meu corpo frágil e a rasgar-me ainda mais a alma ferida.

Fazes-me falta. E eu quero gritar e não posso, preciso de gritar e não consigo.

 

  

(Texto escrito em 5 de Dezembro de 2010, agora alterado e adaptado para a Fábrica de Histórias)

por Leonor Teixeira, a Ametista

Palavras para uma imagem - Lá fora

(Il Telescópio de René Magritte)

 

Às vezes, oiço vozes para lá da janela do meu quarto. Vozes que se soltam na penumbra da noite, chamam por mim num gemido profundo, suspiram o meu nome. Há uma que se desprende das restantes, declara-se perante o meu olhar vago, inebriado pelas luz cálida que abraço ao seu surgir, numa madrugada que me parece não ter fim.

Embriago-me na subtileza de gestos que sussurram, de um corpo que não existe, ouço-o falar-me com uma clareza assustadora e eu pasmo-me no vazio do instante. Nego-me a mim e à voz que não consigo definir, fujo ao momento e vagueio lá fora por caminhos solitários num andar estonteante, pela perseguição do murmúrio que receio, mas anseio.

Regresso, sinto-me saltar por entre as gotas de uma chuva que cai sôfrega junto à vidraça, parecem lâminas de um punhal que me rasgam as veias com destreza, dilatam-me os poros, fazem jorrar da minha pele o rubro que me bombeia o coração. É perturbador este pulsar vacilante que me atordoa e me faz cair no chão, perto do parapeito.

Deixo-me ficar estendida sobre o solo ardente e húmido, sinto o cheiro a terra molhada, absorvo o êxtase do aroma que me ajuda a levantar. Cambaleio descalça e seminua para lá da janela, prossigo na minha caminhada, agarro com firmeza cada luz que desponta nos atalhos mas a voz permanece obstinada e eu não quero, não quero, mas ela não me larga.

Desespero na procura de acordar do pesadelo mas a voz não me permite despertar, quer-me fantasma do meu próprio sono e persiste em ficar a meu lado como um espectro que se ordena a regressar, entra no meu corpo que desvanece aos poucos e se deixa levar.

Acordo desordenada por um adormecer agitado, escuto um bater de porta de um lugar que não é meu e desconheço, olho em redor e vejo a janela aberta de par em par. Saio desnorteada do tumulto dos lençóis que adornam uma cama por fazer e olho-me através dos pedaços de um espelho quebrado que me acena.

Avisto uma sombra que não conheço e não tem rosto, pressinto a voz que se aproxima e ganha corpo, dono de duas mãos que me amparam de um desmaio e eu, no perder dos meus sentidos, pergunto-lhe quem é porque não vejo ninguém, pergunto-lhe quem sou porque não sei.

 

 

(Texto escrito em Março de 2011, agora alterado e adaptado para a Fábrica de Histórias

 

 

por Leonor Teixeira, a Ametista

Um serão diferente

 

Às vezes, lembro-me de ti. Minto. Não só às vezes, mas muitas vezes, tantas, quase sempre.

Recordo-me, principalmente, daquela noite fria e chuvosa de Novembro em que me levaste a casa da tua mãe. Era tarde, fomos pelo quintal, abriste a porta das traseiras e quando entrei fechei os olhos com força, absorvi o aroma que rastejava pelos móveis e pelas paredes e exclamei num sorriso: cheira à casa da minha mãe.

Encaminhaste-me à sala, acendeste a lareira e foste buscar café e chocolate quente. Sentámo-nos no chão, frente a frente, no meio das almofadas pretas e vermelhas espalhadas sobre um enorme tapete persa e debatemos o mistério da vida e a nossa crença no destino. Por entre velas acesas entrámos no mundo das adivinhas, discutimos existências anteriores e contaste-me as experiências que viveste com o teu baralho de tarô, aquele que acabaste por me oferecer dentro de uma caixinha de cartão reciclado.

Esquecemo-nos dos relógios, falámos horas a fio, mais pareciam confissões de dois adolescentes que mantêm uma cumplicidade extrema e inabalável. Perdemo-nos nas palavras até ao amanhecer e, unidos por gestos de afecto, partilhámos momentos, sentimentos, falámos das nossas perdas e das nossas conquistas, rimos e chorámos juntos enquanto a chuva caía intensa lá fora.

Houve alturas em que parecíamos dois verdadeiros poetas, as palavras saíam-nos em verso e as nossas declarações transformavam-se num autêntico poema. As tuas confissões alojaram-se na minha alma e ergueram-se num eco que, de quando em vez, vai e vem: se passei noites contigo foi porque te escolhi, contigo saboreio as palavras e os sentidos e dá-me vontade de guardar-te no colo.

Puseste a tocar uma música suave, defumaste um incenso e convidaste-me para dançar. Rodopiámos um no outro até ao fim da noite numa tranquilidade aconchegante e quase nos perdemos na palavra amar mas venceu a amizade que conseguimos solidificar e, como me disseste, nunca poderíamos ser amantes porque o nosso encontro aconteceu em época incerta. Se tivesse sido um pouco antes ou um tanto depois, teríamos ficado juntos para sempre. Acredito que sim, se acredito.

Encontramo-nos na praia? Acendemos uma fogueira, bebemos café e chocolate quente e voltamos a dançar, pediste-me na despedida, como se o destino nos levasse a outra vida e o nosso adeus fosse um ponto de partida para um novo encontro. Como tu próprio disseste, entre a areia e o mar.


 

(Texto escrito em Janeiro de 2011, agora alterado e adaptado para a Fábrica de Histórias)

por Leonor Teixeira, a Ametista

Mudar de vida, viver com um sonho

 

Há sonhos que se lembram por breves instantes e há os que ficam para sempre.

Laura recorda-se de um sonho que teve, talvez o mais sombrio de todos os que traz na memória. Ou o mais desejado, porque consegue ser um pouco feliz ao revivê-lo.

Todas as manhãs, bem cedinho, um denso nevoeiro encobria os raios de sol que incidiam, pálidos, sobre uma floresta encantada que guardava uma pequena cabana desabitada, feita de ébano.

Por entre as folhas vermelhas e douradas caídas sob numerosos plátanos e faias que se beijavam Laura percorria os caminhos, os cantos e recantos daquele lugar sedutor. Descalça e envolta num manto branco, parava à porta da cabana e ouvia um choro de criança mas não conseguia entrar. Um corvo cantava por perto, deitava-se num suspiro, e um lobo uivava ao longe pelo dia que acabava de nascer. Tudo lhe parecia misterioso mas mágico.

Presas aos troncos mais robustos baloiçavam cartas de amor, imensas, umas dela outras de Duarte. Um dia, na alvorada, pegou em duas delas, tocou-as numa carícia e leu-as em voz alta a olhar para o céu por entre os ramos. Teve uma sensação etérea, algo surreal, do tão genuínas que eram as palavras que ficaram.

'Ainda hoje me declaro a ti como se fosse morrer amanhã, confesso-me nestas folhas de papel que vou amarrotando a cada linha que encho de letras. Tenho medo que não me oiças se tas disser, por isso escrevo na esperança de que me leias e talvez assim consigas sentir e perceber, finalmente, a razão do meu silêncio. Porque é assim que te amo. Em silêncio. Laura.'

'E é assim que eu te sonho. A passeares pela floresta, descalça e vestida de branco, a correr até à única toca que nos sorri e eu a encolher-me no teu colo para nos escondermos naquele sítio tão pequeno e secreto, tão nosso e demasiado longe da vida real. Sei que ficarás para sempre nesse bosque e é assim que te lembro. Duarte.'

Laura queria permanecer entre a verdade e a mentira, a saudade e a ausência dos momentos como uma boneca de cera, sem alma nem coração. Queria deixar-se estar, inerte, envolta em folhas de papel onde as palavras não cabiam, entre canetas e lápis que não escreviam. Com livros, muitos livros em branco e cartas de amor vazias que se espalhavam pela floresta encantada, onde o sol desmaiava nas manhãs e o nevoeiro angustiava o cair das noites.

Sentiu-se despertar debaixo de um abeto branco, o único no meio do extenso arvoredo. A seus pés, uma lamparina dourada brilhava, começava a ganhar vida e transformou-se. Um feiticeiro surgiu, com rosto de lobo e asas de corvo, sorriu-lhe e disse: 'A minha filha nasceu ontem e eu dei-lhe o teu nome'.

 

Laura não voltou a vê-lo.

 

 

(Texto escrito para a Fábrica de Histórias)

por Leonor Teixeira, a Ametista

Com poucas linhas

(Palavras para uma imagem de: Pablo Picasso)

 

Às vezes sinto-te chegar, pássaro branco. Trazes no bico uma flor.

Abres a porta do meu mundo e entras nos meus sonhos devagar. Recolhes-me no teu colo e afagas os meus cabelos lentamente com as tuas penas brancas, tocas no meu rosto na mais delicada carícia. E eu, em poucas linhas, pinto-te a carvão.

Em redor de nós, um vento brando que traz consigo um silêncio precioso e profundo. Nada consegue quebrar esta aragem que nos faz levitar.

Apertas-me docemente de encontro ao teu peito cor de neve e macio como lãs, envolves-me nas tuas asas de veludo e dançamos no silêncio que o vento trouxe, é-nos fiel e faz-nos subir até à nuvem mais alta. Enlaçamo-nos por entre gestos de uma ternura quase transcendental.

Respiram-se os nossos sentidos, tocam-se as nossas almas. É tudo tão suave. Pára o tempo, acaba o mundo e permanecemos neste misto de magia e inocência, meu pássaro branco.

Chamas por mim num cântico supremo e eu rendo-me a ti, tal como tu te entregas à sublime liberdade de voar. Passeamos sob um manto azul na amplitude de um intervalo, é como a vibração celestial das pradarias, e vagueamos no brilho das estrelas.

Não consigo já viver sem ti, dormes no meu ombro a cada noite fria, o teu sono é como a aragem quente que sopra nos desertos. Tu, que despes a chuva quando cai e a vestes de sol, aquele que inebria o meu leito e me alimenta.

É uma porta aberta para um sonho que se repete em cada pedaço de linha que traço com o lápis por entre os meus dedos. Uma linha apenas, das poucas que vou delineando até conceber o perfil do teu voo.

Não me fujas, ave branca, meu amparo constante que me eleva na utopia dos dias cinzentos. Leva-me contigo rumo ao arco-íris, transforma-me em pássaro com as linhas com que te desenhei.


 

(História construída a partir de textos escritos anteriormente, agora alterados e adaptados para a Fábrica de Histórias)

por Leonor Teixeira, a Ametista

por: Leonor T, a Ametista

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