Às vezes, de noite, subo ao telhado do sótão, sento-me a ver as luzes da cidade e o frenesim do fim dos dias e penso que gostava de ficar ali para sempre. O meu sótão é cor de rosa. Leonor Teixeira, a Ametista
Às vezes, de noite, subo ao telhado do sótão, sento-me a ver as luzes da cidade e o frenesim do fim dos dias e penso que gostava de ficar ali para sempre. O meu sótão é cor de rosa. Leonor Teixeira, a Ametista
Hoje pensei que viesses, de noite, como tantas outras vezes. Mas voltei a embrulhar-me em sonhos vãos, perdi-me na utopia do amanhã e esqueci-me que a fantasia não passa disso mesmo.
Foi-me destinado o desencontro, aquele entre ti e o meu passado e estou para aqui, sem conseguir dormir, perdida num momento (in)temporal. As noites são longas em pensamentos, provavelmente ilusórios, e eu continuo a ser assim, sempre serei, aquela eterna sonhadora que eleva o coração nas madrugadas. Por perto, há uma alma que vagueia através de todos os sentidos. Acho que pensa que vai conseguir alcançar-te, para se encontrar comigo. Pobre alma.
Sempre de noite, quando tudo se cala e a vida desmaia. Talvez porque os fantasmas também choram, meio loucos e solitários, quando a escuridão estremece as ruas e os atalhos. No intervalo, entre ti e o passado, onde os silêncios se juntam e as ruínas dos dias deixam de nos assombrar pelas desilusões que nos comeram a vivacidade do corpo. Deves pensar 'discurso incoerente, este; pobre coitada, enlouqueceu'. Ai se soubesses dos sonhos das almas. Têm a voz dos segredos e, em confissões murmurantes, evocam passados delirantes. Consegues ouvi-las?
E assim vão ficando em ti pedaços de mim e da alma que me segue, passo a passo. Uns retalhos aqui, outros ali e tudo se transforma em desalinho. O vazio toma posse de tudo e derruba as palavras, varre-as como o vento leva a cinza dos caminhos. Porque, afinal, tu não existes. Como poderias, se ainda não vieste?
Sinto-me acorrentada ao passado, dispersa no presente, à beira do teu abismo. Querido futuro, se calhar é melhor não chegares.
A tua filha visitou-me ontem. Já não nos víamos há longos anos e pareceu-me razoavelmente bem. Refeita da dor pela tua perda, trazia consigo um suave sorriso no rosto. Deu-me um abraço longo e apertado. Olhámo-nos em silêncio durante largos minutos.
É parecida contigo e está mais bonita do que nunca. Está prestes a entrar nos cinquenta, mas aquele aparelho rejuvenescedor que comprou há uns tempos devolveu-lhe uns bons anos de vida.
Sentámo-nos a conversar sobre o passado e o presente durante horas infindas. O futuro ficou por falar.
O mundo está diferente, muito diferente.
A natureza mudou de cor e o sol já não brilha. O verde transformou-se em cinzento e o branco ficou preto. Os rios secaram e a areia da praia desapareceu. Sentamo-nos no passeio da avenida para ver um mar que já não é azul. Já não há nascer nem por de sol e o vento sopra mais forte todos os dias.
As casas não têm janelas e as portas são blindadas. Parecem naves espaciais. Os utensílios domésticos foram substituídos por autómatos.
As pessoas têm medo de sair à rua e levam consigo uma arma de defesa quando saem para o emprego que escasseia a cada dia. Vivem dos rendimentos conseguidos ao longo dos anos e assim vão comprando máquinas e mais máquinas.
Os carros foram substituídos por avionetas de alta categoria e o trânsito na estrada diminuiu. A toda a hora se vêem pequenos aviões no ar a deslocarem-se de um lado para o outro. Os frequentes acidentes rodoviários deram lugar a acidentes aéreos.
Os pobres estão cada vez mais pobres, vivem na extrema miséria. Os ricos têm fortunas avultadas e os razoavelmente bem na vida conseguem obter, tardiamente, aparelhos e acessórios de alta tecnologia como uma ajuda preciosa para o dia a dia.
As guerras entre os povos continuam. A ganância sobrepõe-se aos valores, como sempre foi. Isso não mudou. É a ausência repugnante da razão e da justiça.
E o planeta estremece.
É este o mundo que temos hoje. Avançado por um lado, retrógrado por outro. O avanço desmedido derrubou a natureza e tudo perdeu o seu brilho. A ambição levada ao extremo abalou as nossas vidas.
Tenho saudades dos tempos em que tudo era normal apesar de que, nessa altura, o mundo já começava a entrar num desequilíbrio total.
As minhas pernas estão cansadas, mas a minha sanidade mental mantém-se e ainda consigo escrever com a minha letra certinha e arredondada. Sabes que já ninguém escreve à mão?
Está na hora de finalizar este manuscrito. Vou enviar-to por um anjo.
Acreditas que o meu coração ainda bate por ti? Já ninguém ama assim, porque os sentimentos também mudaram. As pessoas estão frias e já não há gestos de ternura.
Lembras-te quando nos vimos pela última vez? Foi há uma vida, mas nesse tempo o sol ainda brilhava. Apesar dos nossos desencontros, havia luz. Agora, é tudo tão sombrio.
As notícias dizem diariamente que o mundo está prestes a acabar.
Calculo que no lugar onde te encontras o ar seja ameno e o ambiente sereno.
Ainda esperas por mim? Tenho tanto para te contar.
Tua até sempre.
Laura"
Levantou-se com dificuldade nos seus noventa e um anos e, apoiada na sua bengala, dirigiu-se ao quarto. Deitou-se na cama e fechou os olhos num sorriso de saudade. Deu um beijo à carta que escrevera e apertou-a de encontro ao peito.
Lá fora, um ruído ensurdecedor no ar e um silêncio assustador em terra. As ruas estavam desertas e o céu não tinha lua.