Às vezes, de noite, subo ao telhado do sótão, sento-me a ver as luzes da cidade e o frenesim do fim dos dias e penso que gostava de ficar ali para sempre. O meu sótão é cor de rosa. Leonor Teixeira, a Ametista
Às vezes, de noite, subo ao telhado do sótão, sento-me a ver as luzes da cidade e o frenesim do fim dos dias e penso que gostava de ficar ali para sempre. O meu sótão é cor de rosa. Leonor Teixeira, a Ametista
Quando subires aos céus e chegares às estrelas, perto do sol e da lua, quero estar a teu lado para, finalmente, renascer.
Hoje a minha alma jaz no velho castelo assombrado, outrora nosso, o meu corpo vagueia pelas ombreiras das portas. As janelas batem nos parapeitos com o vento que sopra voraz, das prateleiras empoeiradas caem os livros antigos que lemos, são iguais às nossas vidas. Há folhas que se soltam do diário da nossa história, espalham-se pelo chão que range a cada passo que dou, esvoaçam por entre as vidraças quebradas pelas correrias do tempo. São como as horas dos dias que nos pertenceram, perderam-se num momento intemporal.
E eu abandono-me. Abandono-me silenciosamente, fujo do passado em direcção incerta, alcanço o barco onde navegámos sem rumo e que morre agora em terra firme depois da procura de um rio que corre turvo. Não consigo tocar nas suas águas, parecem névoas que evaporam ao passar.
Quis devorar o mundo, a terra e os céus. Quis aniquilar este amor, esta paixão (sei lá) e renascer das cinzas. Deixei de saber quem sou e onde pertenço, perdi-me na turbulência dos sentidos e fugi de ti, de todos e de mim. Somos tão diferentes.
O sonho ruiu, o meu, de mim, de ti, de nós. Desmoronou-se o nosso castelo, como se fosse de areia a desfazer-se na maré vaza. E eu, em que me transformei? Em sombra, apenas em sombra.
Refugiada numa torre em ruínas recuso-me respirar, suspiro como que pela última vez, sinto-me perto do que não cheguei a conquistar. Onde ficaste, alma que se perdeu pelas veredas em redor da torre, em atalhos obscuros sem saída? Até no final se repete o desencontro, o nosso, como dois espíritos desconhecidos que se cruzam nas brumas de um labirinto.
Apagam-se as luzes, desvanecem as cores, tudo se torna escuro e tu ficas fantasma do velho castelo. Eu, parto solitária pelas neblinas no instante em que te esqueço e caminho numa nuvem que desceu à terra.
Toco o céu, beijo uma estrela e abraço um anjo num murmúrio:
- Por enquanto, estou viva. A torre caiu.
(História construída a partir de textos escritos anteriormente, agora alterados e adaptados para a Fábrica de Histórias)
Como se o mundo acabasse no instante, como se o céu caísse sobre os campos e as nuvens flutuassem nos rios. Como se o sol empalidecesse e chorasse, queimando as árvores que crescem e as flores que nascem, secando as águas que correm devagar.
Como se parassem os relógios, terminassem as tardes e as noites surgissem nas manhãs. Como se já não houvesse lua e o chão mergulhasse numa sombra.
Como morrem as palavras. Como se as letras fugissem, desordenadas, dos livros em branco pelas histórias esquecidas. Como se os olhos já não lessem e as mãos já não tocassem nas páginas que ficaram.
Como se os bosques encantados perdessem a magia e as florestas se despissem pelo cessar da vida. Como se os lobos deixassem de uivar e os pássaros ficassem sem asas para voar.
O meu sonho morreu.
Como se os anjos despertassem sobre a terra, como se o luto mudasse de cor e os homens se vestissem de branco. Como se o destino fosse interrompido e os fantasmas dominassem o universo.
Resta-me dançar, de alma pequena mas de corpo inteiro. Como se dançasse num salão de baile, onde as gentes se escondem num atropelo para escapar aos dias mortos. Sucumbem, por entre conversas de silêncio inacabadas e passos de dança frenéticos. E bailam, bailam até ao fim das horas, de olhar vago e sem sorrisos porque a vida fugiu com os sonhos apagados.
Com o meu sonho morreu a minha alma, mas também eu dançarei sofregamente até que o meu corpo tombe e adormeça.
Às vezes, oiço vozes para lá da janela do meu quarto. Vozes que se soltam na penumbra da noite, chamam por mim num gemido profundo, suspiram o meu nome. Há uma que se desprende das restantes, declara-se perante o meu olhar vago, inebriado pelas luz cálida que abraço ao seu surgir, numa madrugada que me parece não ter fim.
Embriago-me na subtileza de gestos que sussurram, de um corpo que não existe, ouço-o falar-me com uma clareza assustadora e eu pasmo-me no vazio do instante. Nego-me a mim e à voz que não consigo definir, fujo ao momento e vagueio lá fora por caminhos solitários num andar estonteante, pela perseguição do murmúrio que receio, mas anseio.
Regresso, sinto-me saltar por entre as gotas de uma chuva que cai sôfrega junto à vidraça, parecem lâminas de um punhal que me rasgam as veias com destreza, dilatam-me os poros, fazem jorrar da minha pele o rubro que me bombeia o coração. É perturbador este pulsar vacilante que me atordoa e me faz cair no chão, perto do parapeito.
Deixo-me ficar estendida sobre o solo ardente e húmido, sinto o cheiro a terra molhada, absorvo o êxtase do aroma que me ajuda a levantar. Cambaleio descalça e seminua para lá da janela, prossigo na minha caminhada, agarro com firmeza cada luz que desponta nos atalhos mas a voz permanece obstinada e eu não quero, não quero, mas ela não me larga.
Desespero na procura de acordar do pesadelo mas a voz não me permite despertar, quer-me fantasma do meu próprio sono e persiste em ficar a meu lado como um espectro que se ordena a regressar, entra no meu corpo que desvanece aos poucos e se deixa levar.
Acordo desordenada por um adormecer agitado, escuto um bater de porta de um lugar que não é meu e desconheço, olho em redor e vejo a janela aberta de par em par. Saio desnorteada do tumulto dos lençóis que adornam uma cama por fazer e olho-me através dos pedaços de um espelho quebrado que me acena.
Avisto uma sombra que não conheço e não tem rosto, pressinto a voz que se aproxima e ganha corpo, dono de duas mãos que me amparam de um desmaio e eu, no perder dos meus sentidos, pergunto-lhe quem é porque não vejo ninguém, pergunto-lhe quem sou porque não sei.
(Texto escrito em Março de 2011, agora alterado e adaptado para a Fábrica de Histórias)
Às vezes sinto-te chegar, pássaro branco. Trazes no bico uma flor.
Abres a porta do meu mundo e entras nos meus sonhos devagar. Recolhes-me no teu colo e afagas os meus cabelos lentamente com as tuas penas brancas, tocas no meu rosto na mais delicada carícia. E eu, em poucas linhas, pinto-te a carvão.
Em redor de nós, um vento brando que traz consigo um silêncio precioso e profundo. Nada consegue quebrar esta aragem que nos faz levitar.
Apertas-me docemente de encontro ao teu peito cor de neve e macio como lãs, envolves-me nas tuas asas de veludo e dançamos no silêncio que o vento trouxe, é-nos fiel e faz-nos subir até à nuvem mais alta. Enlaçamo-nos por entre gestos de uma ternura quase transcendental.
Respiram-se os nossos sentidos, tocam-se as nossas almas. É tudo tão suave. Pára o tempo, acaba o mundo e permanecemos neste misto de magia e inocência, meu pássaro branco.
Chamas por mim num cântico supremo e eu rendo-me a ti, tal como tu te entregas à sublime liberdade de voar. Passeamos sob um manto azul na amplitude de um intervalo, é como a vibração celestial das pradarias, e vagueamos no brilho das estrelas.
Não consigo já viver sem ti, dormes no meu ombro a cada noite fria, o teu sono é como a aragem quente que sopra nos desertos. Tu, que despes a chuva quando cai e a vestes de sol, aquele que inebria o meu leito e me alimenta.
É uma porta aberta para um sonho que se repete em cada pedaço de linha que traço com o lápis por entre os meus dedos. Uma linha apenas, das poucas que vou delineando até conceber o perfil do teu voo.
Não me fujas, ave branca, meu amparo constante que me eleva na utopia dos dias cinzentos. Leva-me contigo rumo ao arco-íris, transforma-me em pássaro com as linhas com que te desenhei.
(História construída a partir de textos escritos anteriormente, agora alterados e adaptados para a Fábrica de Histórias)
- Preciso de subir ao céu e pintar as estrelas - disseste-me num passado que se me depara tão longínquo.
E continuaste a falar com um sorriso soberbamente indecifrável, sentado na tua poltrona gasta pelo tempo, de olhos fechados como que num delírio consciente.
- Preciso de fugir do tumulto das cidades e ficar no silêncio que separa a realidade do infinito. Quero a utopia do intocável, sentir a velocidade dos ventos que vêm com o sol quando se junta à lua e fica a seu lado nas noites. Quero sentar-me nas nuvens que correm devagar e assombram a terra molhada, pelas lágrimas dos deuses que choram a cantar. Quero mudar as cores do firmamento.
Ficaste em silêncio por breves instantes, pareceram-me quase eternos, era um silêncio assustador mas imensamente celestial. Depois, prosseguiste na tua deslumbrante divagação.
- Quero que a lua e as estrelas se tornem amarelas, o amarelo é a cor da alegria, e o céu seja da cor do fogo para aquecer as almas frias que vagueiam na incerteza do destino. Vais buscar o teu violino e tocas aquela música que faz o pincel pular por entre os meus dedos manchados de tinta a óleo e me ajuda, na sua fascinante melodia, a criar este cenário?
Ainda me lembro de me piscares o olho no teu semblante matreiro, misto de inocência e maturidade. Misterioso, tu, tão angustiado com a vida que corria lá fora.
- No canto inferior direito da tela ficará a velha igreja que fez gerar em mim o amor incondicional a esta arte e, ao lado, pintarei a livraria pela qual não me deixei ensinar, do tão pouco que li. Afinal, acabei por ser quem não queria, uma sombra perdida na luz dos caminhos.
Senti o silêncio uma vez mais, era profundo como a saudade e vazio como a morte. Vi uma lágrima cair pelo teu rosto abatido pelo passar das idades mas o teu sorriso retornou invulgar, como sempre, e continuaste na tua fantasia.
- No canto inferior esquerdo desenharei a montanha que desejo subir um dia e, do seu cume, tocar o céu com as minhas duas mãos. Sabes? Quero pintar o sol de azul.
Décadas depois, dou por mim a olhar para a tua noite estrelada e penso em ti, meu adorado Van Gogh, tu que partiste tão cedo e não regressaste. Tu és o sol que guarda as estrelas num céu que parece cair e eclodir com a terra e eu vejo-te dançar nessa noite sem fim.
E pintas, pintas até sempre o fascínio das noites e tudo se torna azul, tão azul, sem cidades nem gentes. Adormecem os dias, as noites despertam com a serenidade das madrugadas pintadas de amarelo e o mundo transforma-se em sonho, no teu sonho.
À noite, quando a minha família descansa cá em casa e lá fora as árvores dormem e as flores se escondem do escuro, sento-me no parapeito da janela do meu quarto e fico a ver as nuvens a passar. Dançam como bolas de algodão, pintam o céu de branco com o seu bailar e vão deixando a lua despertar para iluminar as madrugadas.
É nessas alturas em que peço às estrelas que não parem de brilhar e me deixem ficar assim, ao sabor da aragem que ajuda a esvoaçar os cortinados que aconchegam o meu quarto, para que consiga sonhar. E sonho, sonho que serei sempre criança porque se crescer fico assustada, a perda da inocência aperta-me o coração, põe-me triste e eu não quero chorar.
E penso que quero ficar sempre aqui, sentada nas almofadas mais macias que a minha mãe pôs junto à janela, para admirar docemente o que de mais belo existe nas noites.
Vejo os ramos balançarem devagarinho com o vento que vai soprando brandamente, avisto a luz do rio que corre para lá dos jardins, consigo ouvir ao longe as suas águas correrem de mansinho sobre as pedras junto ao leito. E continuo a escutar os ruídos que invadem a imensidão das sombras numa suavidade extrema. Escuto com carinho os pássaros da noite, vindos dos beirais, que passam por mim a cantar baixinho e me fazem baloiçar.
A lua vai mudando de tempos a tempos, quando está cheia aclara as noites num esplendor, parece que me pega ao colo e me conforta, e eu falo e rio e choro de alegria. Com ela fecho os olhos e sinto o céu tão perto, quase consigo tocá-lo, e há sempre uma estrela a brilhar só para mim, fiel aos meus segredos de criança.
Permaneço neste divagar, vagueio descalça por entre as almofadas coloridas e brinco no meu mundo de fantasia e confidências, que se completa com a imponência do que é natural, singelo e tão imensamente leal.
Sinto abrir-se a porta do meu quarto, é a minha mãe que entra para me abraçar e diz-me com doçura a beijar os meus cabelos:
- Filha, queres que te conte uma história para adormeceres?
- Não, mãezinha. Sabes? A lua disse-me que cada estrela que brilha é um sorriso que nasce, é um sinal de esperança que envia a quem olha para o céu todas as noites. Também me disse que não existe beleza maior do que o silêncio das madrugadas, mesmo aquele que é quebrado pelos sons da natureza. Significa que está viva e é imortal, como os anjos que moram no infinito.
Ainda hoje gosto de mergulhar nos lençóis onde, naquele fim de tarde, os nossos corpos se enlaçaram. Ainda sinto as tuas mãos percorrerem o meu corpo na mais perfeita carícia, sinto que estás aqui a tocar nos meus cabelos. O teu olhar deixa-me assim, disseste. Perdi-me no murmúrio da tua voz, entreguei o meu corpo ao teu, envolvi-me em ti.
A noite veio de mansinho, lá fora a chuva caía sem perdão, escutámos o seu chorar que escorria pela janela do quarto e nos pedia para entrar. E o vento ria sem parar, soltava gargalhadas que vinham de norte e sul, nem as nuvens o conseguiram deter.
Pediste-me para acender uma vela com aroma a sândalo e âmbar. Eu disse-te que o amarelo é a cor dos sorrisos e peguei numa para atear as nossas almas. O fósforo dançava na minha mão trémula enquanto acendia uma das tantas velas que poisei no chão de faia.
Os lençóis de cetim cheiravam a baunilha, os nossos corpos renderam-se à essência doce que pairava dentro das quatro paredes que iam aquecendo devagar a cada sentido nosso que se revelava, por entre a suavidade da luz que nos rodeava.
O cenário era de um romance singular, sobre a cama bailavam pétalas de rosa, soltámos o que de mais místico havia em nós e na nossa entrega pedimos à vida que acabasse ali, onde mora o princípio do fim.
Tenho medo, disseste. Medo que o mundo pare de girar, medo de nunca mais te ver, de não voltar a tocar a tua pele. Não tenhas, respondi e segurei o teu rosto com ternura nas minhas duas mãos. Um dia a minha mãe escreveu uma história que se chamava ‘juntos na morte’. Que importa a vida, se não podemos dar as mãos lá fora?
Olhámos para o céu através da vidraça, não havia lua e as estrelas tinham-se escondido nas nuvens mas vimos velas, muitas velas. Estavam por todo o lado, espalhadas pela estrada, nos passeios, nas ruas e nas vielas. Eram todas iguais, tingidas da cor que seca o sol.
Nem a chuva, nem o vento conseguiram apagar o seu ardor, a cidade ficou pincelada de amarelo dourado e as pessoas pararam no esplendor do momento. E tu acabaste por partir, em busca do calor dos atalhos.
Caiu serena a madrugada, senti-te do outro lado da cidade. Tocaram três badaladas no relógio da torre da igreja, acendi um cigarro na chama de uma vela esquecida e escrevi para ti. O vento deixou de soprar nas suas gargalhadas, um cão ladrou ao longe e uma cigarra chorou comigo pelo adeus que não me disseste. O meu imaginário vagueou pela varanda com vista sobre a cidade que dormia tranquila pelo fulgor das velas a arder.
Voltei para o vazio dos lençóis, ficaram com o teu cheiro marcado. Elevei-me num sono encantado onde inventei a fantasia que me embalou num cenário de cetim. Estás aqui, disse a mim mesma como que a chamar por ti, e uma concha formou-se no centro de uma cama por fazer. Fomos nós. A chuva voltou a chorar em agonia, as suas lágrimas apagaram as velas, quase todas, apenas uma permaneceu resplandecente. Seria presságio de ti, de mim ou seria apenas um sinal teu?
Regressei à varanda envolvida num lençol, pétalas de rosa iam caindo por entre as velas espalhadas pelo chão. O aroma a sândalo e âmbar ficou marcado no quarto onde estivemos, penetrado em tudo o que tocámos. A vista sobre a cidade encandeou-me o rosto, o meu corpo oscilou pela perda do que não sei.
Adormeci na essência do que ficou de ti, mas estremeci ao acordar com a alvorada. Saí para a rua num susto e parei junto a uma vela ainda a arder, a única, de todas as que se formaram num manto cintilante que enfeitou os caminhos durante a noite. Ouvi vozes e aproximei-me das gentes que gemiam de aflição. Disseram-me que tinhas morrido.
Corri desnorteada num lamento até onde a chuva e o vento me levaram, não sei a que lugar, parei e gritei: Há um Outono a morar na minha alma. Reacendam a vela que se extinguiu, para que volte a Primavera.
No último fim de tarde sombrio de Setembro, quando morreste, saí de casa como sempre fiz todos os dias da minha vida mas, daquela vez, de corpo inerte. Carregava no rosto a marca dos anos e a angústia de uma espera incessante de ti, tu, que já não podias voltar.
Sentei-me junto ao cais da praia que sempre me ofereceu as melhores recordações da nossa juventude inacabada, que se perdeu nos tempos pelo amadurecer das idades.
O nevoeiro aproximou-se denso e frio como sempre fora e tanto me confortava a cada entrada das noites. A meu lado sentou-se a saudade, minha eterna confidente do passado, que trazia consigo aquela dor nostálgica que me acompanhou ao longo das décadas e se transformou, no momento em que partiste, numa aflição assustadora por nunca mais te poder ver.
Sabes? Era àquele lugar que eu ia sempre à mesma hora e onde me despedi de ti no mais triste entardecer a que se assistiu, disfarçado pela beleza da paisagem, ao lançar às águas frias do teu mar a última carta de amor que me deixaste. Nela ficaram escritas as tuas palavras derradeiras, agarradas à ausência tão própria de um homem dos oceanos, e onde dizias que não podias ser meu porque tu eras do mar e ele pertencia-te a ti, preenchia os teus minutos e mais nada nem ninguém poderia ocupar o seu lugar.
Lembro-me de ouvir falar de ti quando já não estavas, meu velho do mar. Chamavam-te o aventureiro solitário das marés, do tanto que desafiaste tempestades ao comando do navio que foi só teu. Era muito mais do que isso, era o teu lar, o teu recanto, a tua vida. Foi a tua verdadeira morada, tão e apenas tua. A pedra preciosa que amavas sem qualquer condição.
Recordo-me dos pescadores da aldeia contarem as tuas histórias sem se cansarem, ao redor de uma mesa da taberna da areia. Eram histórias plenas de aventura, falavam dos teus regressos de cada viagem, quando atracavas no porto e os abraçavas com uma força extrema pela alegria de voltar. E eu ouvia os contos que eram só teus, sabia-os de cor porque estava sempre lá, escondida entre os rochedos, à espera de ver-te chegar.
Eras um guerreiro, sobrevivias a qualquer intempérie e apesar de seres um homem marcado pelas estações, pelo sol ardente dos verões e o frio cortante dos invernos, eras dono de uma alma nobre, fiel ao teu mar e nada te detinha.
Sei que deixaste escritos pedaços das viagens em que embarcaste, descrições comoventes das tuas paragens por lugares distantes e onde ficaram retratados os teus sorrisos de cada vez que ancoravas num país qualquer. Foste guardando de uma forma memorável a força das amizades que construíste em terra firme e os adeus marcados pelo soltar das amarras.
Contam que eras solitário pela perda de um grande amor e pela lealdade que juraras ao teu navio, companheiro dos teus dias e afago das tuas noites. Seria eu o grande amor que deixaste para trás para te dedicares ao encanto e assombro dos oceanos? Sinto que sim, ou que talvez.
Nunca ninguém soube o teu verdadeiro nome, nunca o revelaste, e naquela noite em que uma águia sobrevoou circundante as dunas para lá da aldeia da praia, o teu navio naufragou na mudança das marés e o teu corpo nunca foi encontrado. Dizem que ficou junto aos mais belos corais, perto de um tesouro sem dono, no fundo do mar.
E eu quis soltar as amarras que me prenderam ao cais que te pertenceu e que ainda hoje é teu. E desejei adormecer sobre o navio onde moraste, lá, nas águas que navegaste por entre as brumas e em que, tantas vezes, mergulhaste na tentativa de respirar o impossível e onde agora descansas.
Os fins de tarde ficaram para sempre, tardes submersas onde jaz o teu corpo, pelas âncoras que agarraste e levaste contigo bem presas à tua alma de aventureiro solitário das marés.
Por onde andas, Duarte? Deixei de te ver, já não lembro o teu rosto, não reconheço o teu cheiro, desconheço quem és. Apenas recordo a tua voz.
Deixaste-me aqui, do lado de cá do espelho da vida, sozinha num mundo que já não me pertence, sem cor, sem brilho. Porque partiste? Pedi-te para ficares e tu insististe em ir e não voltar. Como irei continuar sem ti? A dor é demasiado grande, recuso-me a viver assim.
Deixas-me ir para junto de ti? Há um lugar a teu lado guardado para mim, não há? Eu sei que esse lugar existe, sinto que é meu, necessito urgentemente de alcançá-lo. Dá-me um sinal. Preciso de ti, mesmo que longe da vida que me foi oferecida e que agora renego.
Sabes? Esperei-te durante largos anos, sonhei-te como nunca imaginei ser possível, vivi-te como ninguém. Depois de conquistar-te a vida levou-te de mim, arrancou-me de ti, quebrou o que construí de nós.
Para lá do espelho há flores, amor da minha vida? Imagino um lugar sereno, um campo verde onde anjos flutuam de branco. Seremos nós? Acredito que sim. Não vivemos a mais bela história de amor? Não foi a nossa alma rasgada por um amor impossível que sobreviveu a um mundo hostil e que conseguimos ultrapassar em segredo? Em segredo, verdade. Lembras-te? Talvez por isso o destino não nos tenha proporcionado a libertação da nossa paixão.
Não respondes. Continuas aí, em silêncio, frente a um espelho prestes a quebrar, um espelho inventado para nós e que tem sido uma barreira que teimou em ficar. Vejo-te do lado de lá, de costas viradas para ti próprio, longe de mim, perto de um mundo que não conheço. E eu continuo a amar-te, impossível substituir-te. Ainda espero por ti, aguardo a cada minuto dos meus dias que tu surjas, vindo do outro lado do espelho, de braços abertos.
Tenho de confessar-te. Sinto necessidade de fazê-lo. Gritar ao mundo que foste a razão do livro que escrevi, das telas que pintei, das músicas que dancei, do lugar onde fiquei. E senti-te perto, tão perto, mas perdi-te na altura em que acreditei que a nossa história poderia ser eterna. Acabei por encerrar a minha vida como se fosse uma folha de um diário e não virei a página.
O meu amor por ti está declarado no livro que escrevi para ti e tu não leste. Está aí, junto ao espelho que ergueste, entre quem és e quem gostarias de ter sido.
Ele e ela dirigiam-se a casa depois de uma agradável ida ao cinema. O filme a que tinham assistido tinha-lhes transmitido um estado de alma intenso. Caminhavam em silêncio e, ao aproximarem-se do semáforo que cruzava a rua principal da cidade com uma outra qualquer, ele deu-lhe a mão e puxou-a para junto de si. Ficaram tão perto um do outro que os seus lábios quase se tocaram. Naquele instante, o sinal estava vermelho e ele convidou-a para dançar.
Sem música?, perguntou ela em tom de timidez. Eu canto para ti, respondeu ele e, num gesto lento, enrolou-a de encontro ao peito conduzindo-a até à estrada. A rua estava deserta, o silêncio era de ouro. Observaram o semáforo passar a verde enquanto davam início a uma dança na estrada. Ele cantarolava qualquer música lenta enquanto os seus corpos se enlaçavam na mais perfeita harmonia. O sinal mudou de cor, passou de verde a laranja, a dança parou, olharam-se de perto e deitaram-se na estrada, lado a lado. As suas mãos cruzaram-se enquanto o vermelho do semáforo despontava, olharam as estrelas, identificaram cada uma delas sobre um chão frio que refrescava os seus corpos quentes, ávidos de aventura. Perderam a noção do perigo, permaneceram deitados sob um céu que deixava mostrar uma lua prateada, autêntica confidente de um momento que não queriam que acabasse.
O sinal passou a verde, sentiram um carro aproximar-se a alta velocidade e levantaram-se rapidamente. Saltitaram até ao passeio, as mãos continuavam dadas enquanto automóveis vindos de longe passavam apressados. Abraçaram o semáforo que ia mudando de cor, soltaram gargalhadas e voltaram a tocar-se numa dança lenta em redor do sinal de trânsito. Os risos deram lugar a sorrisos ternurentos.
Sentiam-se livres para desafiar o destino. O amor entre eles nascia agora, por entre um perigo e uma aventura que se encontravam entre o proibido e o devido. Era urgente permanecerem no intermitente, um intervalo que deixava o tempo parar e guardar nas folhas de um diário uma paixão que começava a ganhar as cores de um qualquer semáforo de rua.