Às vezes, de noite, subo ao telhado do sótão, sento-me a ver as luzes da cidade e o frenesim do fim dos dias e penso que gostava de ficar ali para sempre. O meu sótão é cor de rosa. Leonor Teixeira, a Ametista
Às vezes, de noite, subo ao telhado do sótão, sento-me a ver as luzes da cidade e o frenesim do fim dos dias e penso que gostava de ficar ali para sempre. O meu sótão é cor de rosa. Leonor Teixeira, a Ametista
(Imagem encontrada algures há muito tempo sem referenciação de autor. Foi imagem de cabeçalho deste blog. Adoro)
Arrumei a ametista no fundo do baú guardado num canto da antiga sala de costura. Encerrei um capítulo de memórias vãs na urgência de esquecer. Fui em busca do meu nome e encontrei-o nas asas que perdi. Estavam presas aos ramos da árvore que conforta o meu velho sótão, outrora cinzento. Pincelei as paredes de cor de rosa, o tecto, a janela, as portas, os móveis antigos. Inventei o céu da mesma cor em seu redor e voltei a voar. O meu sótão é cor de rosa. Como são todos os meus sonhos.
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M. esperou dois mil e sessenta e cinco dias por alguém que, afinal, não conhecia. Foi ao fundo do baú, guardado num canto da antiga sala de costura do velho sótão, agarrou na ametista, saiu de casa e lançou-a ao vento. Pensa que caiu ao rio e foi levada pelas tempestades. D. fora a maior (des)ilusão da sua vida e M. não encontrara o lugar da felicidade. Mudou de nome e pintou o sótão de cinzento. Pincelou as paredes, o tecto, as portas, os móveis antigos. Abriu a janela, viu o céu da mesma cor e não conseguiu voar. As asas tinham voltado a prender-se aos ramos da árvore que ensombrava o velho sótão, outrora cor de rosa. Enquanto varria a poeira do passado que estremeceu a sua vida, encontrou um gato preto junto ao baú, que olhava para ela como quem pede carinho maternal. Pegou nele ao colo, passeou com ele, comprou-lhe uma alcofa, educou-o e fez dele sua companhia. Quem sabe não lhe daria sorte, em vez daquele azar tão temido pelos supersticiosos mais convictos? O nome do gato? Ainda hoje não tem, não vá o destino pregar-lhe mais alguma partida. Afinal, tudo tem a ver com nomes. M. chama-lhe, apenas, gato preto.
Estava escuro. Escuro e silencioso. Apenas um ranger de degraus sob a sombra de uns pés descalços na poeira e uma mão, enrugada, agarrada ao corrimão da escadaria que oscilava a cada passo.
Os vidros das janelas estavam partidos, as ervas daninhas rastejavam pelos parapeitos e a porta de entrada não fechava, batia compassadamente ao sabor do vento, umas vezes manso, outras voraz.
Entrou no quarto empobrecido pelos anos, as memórias bailavam sobre os móveis. Livros sem capa, diários com palavras desbotadas, bonecas sem rosto, retratos rasgados. A um canto, um espelho embaciado e estilhaçado reflectia as cicatrizes de um corpo envelhecido com cabelos desgrenhados, dentro de um traje esfarrapado.
'Quem és tu?', perguntou-se. 'No que te transformaste ao deixares de ser poema? Em que parte do caminho ficaram os teus versos, onde os perdeste?'.
Sobre a escrivaninha insegura no soalho a desabar, a velha máquina de escrever. A seu lado, papéis amarrotados, o telefone preto obsoleto e o cinzeiro de ferro forjado atulhado de restos de cigarros ressequidos. No rolo da máquina, uma folha amarelecida onde conseguia, ainda, ler-se: 'Ensina-me a voar, que eu ensino-te a sonhar. Vamos dançar? Amo-te tanto. M.'
Abandono. Tudo cheirava a abandono. Até as palavras que ficaram tinham o assombroso aroma do silêncio, marcado pela ausência de quem nunca mais voltou da despedida.
Caído no chão, prestes a ruir, o relógio que girou durante décadas estava agora parado pelo desmaio desconcertante da corda que fazia, antigamente, rodopiar os ponteiros.
Os quadros, outrora pincelados a guache, permaneciam nas paredes rachadas, agora empenados e sem cor pelo orvalho das noites que consumia as tonalidades. Quem se interessava por pinturas a guache, se acabavam sempre por desaparecer?
Saudade. Apenas saudade. Era o que restava. Já não sentia dor, acabava de se entregar ao chamamento da decadência que lhe permitia, apenas, alguns gestos demorados e finais. 'Leva-me', dizia repetidamente. 'Não quero voltar'.
Foi numa solidão assustadora que se deixou ficar, sentada na cadeira a tombar sobre a escrivaninha, frente à velha máquina de escrever, abraçada às memórias gastas pelo tempo.
A alma sentou-se na janela e, ao ver que o céu não tinha lua, distanciou-se serena e poética.
Fecho a porta do meu sótão e olho em meu redor. Por entre o cor de rosa das paredes, do tecto, da janela, das portas e dos móveis, pinceladas escarlate escorrem devagar. Tulipas, rosas e cravos vermelhos abundam o chão. Enfeito os meus cabelos, visto-me de flores e danço nos meus sapatos encarnados.
É o início de uma nova era. Consigo sentir o cheiro a liberdade, é tão grandiosa, tão imensamente bela que a cor cálida que mora agora neste canto depara-se com o rubro do meu coração.
Sinto um alívio arrepiante, há uma serenidade quase transcendental que se aconchega a mim e toca a minha alma que ganha corpo e se envolve em aromas purificantes, outrora desmaiados pela perda.
Tudo começa a fazer sentido depois das lágrimas, ocultas, derramadas em todos os meus silêncios, apertos de peito na ausência da coragem que pensava inatingível. Aquela que hoje chama por mim, canta o meu nome e me abraça a declamar.
Tirei as algemas, quebrei as correntes que me arrastaram durante anos a fio. Há um sorriso no meu rosto que se rasga e ganha asas, abre a janela do meu sótão e sobrevoa os jardins que sempre sonhei.
E continuo nesta dança intensa, que não me vai fazer parar em momentos de incerteza. Porque certa é a urgência do não querer e ao fundo do corredor do meu sótão, que já tem a marca dos meus passos, há um caminho. Tem brilho e é da cor do meu sangue.
Desejo a todos os que espreitam o meu sótão um Feliz Ano Novo.
Laura esperou dois mil e sessenta e cinco dias (aproximadamente) por alguém que, afinal, não conhecia.
Foi ao fundo do baú, guardado num canto da antiga sala de costura do velho sótão, agarrou na ametista, saiu de casa e lançou-a ao vento. Pensa que caiu ao rio e foi levada pelas tempestades. Duarte fora a maior (des)ilusão da sua vida e Laura não encontrara o lugar da felicidade.
Mudou de nome e pintou o sótão de cinzento. Pincelou as paredes, o tecto, as portas, os móveis antigos. Abriu a janela, viu o céu da mesma cor e não conseguiu voar. As asas tinham voltado a prender-se aos ramos da árvore que ensombrava o velho sótão, outrora cor de rosa.
Enquanto varria a poeira do passado que estremeceu a sua vida, encontrou um gato preto junto ao baú, que olhava para ela como quem pede carinho maternal. Pegou nele ao colo, passeou com ele, comprou-lhe uma alcofa, educou-o e fez dele sua companhia. Quem sabe não lhe daria sorte, em vez daquele azar tão temido pelos supersticiosos mais convictos?
O nome do gato? Ainda hoje não tem, não vá o destino pregar-lhe mais alguma partida. Afinal, tudo tem a ver com nomes. Laura chama-lhe, apenas, gato preto.